Revista da EMERJ - V. 21 - N. 2 - Maio/Agosto - 2019

 R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 21, n. 2, p. 52-118, Maio-Agosto, 2019  84 democrático e como negadores da discricionariedade judicial, que seria substituída por uma visão da decisão do juiz enquanto algo inteiramen- te determinado pelos puros termos dos enunciados legais. Contudo, se bem considerada, tal acusação se inverte. Com efeito, são muitos desses jusmoralistas contemporâneos os que negam a discricionariedade judicial, rendendo reverência a autoritarismos sem propósito, legitimando ditadu- ras entendidas como quintessências da justiça jusnaturalista – na Espanha, sem ter que ir muito longe, não devemos nos esquecer de nossa própria história doutrinária – e proclamando que, dado que a norma muito injusta não pode ser jurídica, toda norma jurídica é digna de obediência, ao menos prima facie , como tanto gosta de afirmar hoje em dia certa doutrina. Para fazer Kelsen comungar com a teoria da decisão judicial própria do positivismo metafísico do século XIX é preciso forçar seus termos com autêntico dolo; mais ainda, é preciso não ter lido nem sequer a Teoria Pura do Direito por inteiro, pois em seu último capítulo – intitulado “A interpretação” – Kelsen expõe um ponto de vista que está nas antípodas dessa ideia e que melhor se vincularia ao irracionalismo próprio das cor- rentes do chamado realismo jurídico. Segundo Kelsen, “todo acto jurídico, sea un acto de producción de Derecho, sea un acto de pura ejecución, en el cual el Derecho es aplicado, sólo está determinado en parte por el Derecho, quedando en parte inde- terminado. La indeterminación puede referirse tanto al hecho condicio- nante como a la consecuencia condicionada” 69 e tal indeterminação pode tanto obedecer a uma intenção do legislador quanto às peculiaridades de nossa linguagem, na qual as palavras geralmente padecem de ambiguidade e imprecisão. Dessa feita, o aplicador do direito “se encuentra ante va- rios significados posibles” da norma. 70 Também pode acontecer que, em determinado caso, concorram duas normas contraditórias presentes na mesma lei, ambas “con pretensión simultánea de validez”. 71 Nessas e em outras situações semelhantes o juiz vê-se inevitavelmente exposto à dis- cricionariedade, 72 pois terá que eleger uma alternativa entre as concorren- 69 KELSEN, 1979a, p. 350. 70 KELSEN, 1979a, p. 351. 71 KELSEN, 1979a, p. 351. 72 “En todos estos casos el derecho por aplicar constituye sólo un marco dentro del cual están dadas varias posibilidades de aplicación, con lo cual todo acto es conforme a derecho si se mantiene dentro de ese marco, colmándolo en algún sentido posible” (KELSEN, 1979a, p. 351) e, “por lo tanto, la interpretación de una ley no conduce necesariamente a una

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