Revista da EMERJ - V. 21 - N. 2 - Maio/Agosto - 2019

 R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 21, n. 2, p. 52-118, Maio-Agosto, 2019  83 que fazem profissão de fé jusnaturalista, discriminando e perseguindo os positivistas. Então, por que a reiterada insistência segundo a qual se deve a Kelsen a teoria do direito que melhor serviria aos propósitos antidemo- cráticos e ditatoriais do poder estatal? A hipótese explicativa seria a se- guinte: conhecidas as circunstâncias sob as quais tal imputação foi gestada na Alemanha, só haveria que se insistir na utilidade que o antikelsenismo representou para os poderes que frequentemente pretendem se legitimar mediante apelações a metafísicas semelhantes às que Kelsen impiedosa- mente criticava, tais como o direito natural – religioso ou não –, o espírito do povo, a essência da nação e tantas outras enteléquias que governaram o pensamento e a prática política de boa parte do século XX e que só uns poucos pensadores atrevidos e adiantados diante de seu tempo souberam questionar: Isaiah Berlin, George Orwell, Albert Camus, Raimond Aron... Kelsen. E o destino de todos foi o mesmo: ser objeto de desqualificação e desfiguração por quantos autoritarismos têm havido, sejam de direita ou de esquerda. 3. Três grandes mentiras sobre Kelsen e sua obra 3.1. Proclamava Kelsen que a aplicação das normas jurídicas era uma simples subsunção automática, nada mais do que um elementar silogismo? Não é pouco frequente que, na polêmica jusfilosófica, as posturas do rival sejam tergiversadas e reduzidas a uma muito elementar caricatura. Tal ocorre, por exemplo, quando o positivismo rotula de simples jusnatu- ralismo a doutrina jusmoralista de autores como Dworkin ou Alexy, para mencionar duas grandes figuras do debate contemporâneo. Ao fazê-lo, omite as cruciais diferenças existentes entre o jusnaturalismo propriamen- te dito e outras teorias que, ainda que vinculem a validade das normas jurídicas à sua compatibilidade com certos preceitos morais, não susten- tam que a dita moral seja universal e imutável e se encontre gravada na natureza humana, seja por Deus ou pela constituição básica do homem. E o mesmo acontece quando vemos tantos antipositivistas de hoje despa- charem Kelsen, Hart ou Bobbio, vistos como defensores do positivismo ideológico – ou seja, da obrigação moral de obedecer toda norma jurídica pela simples razão de ser jurídica –, como pouco leais às regras do jogo

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