Revista da EMERJ - V. 21 - N. 2 - Maio/Agosto - 2019
R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 21, n. 2, p. 52-118, Maio-Agosto, 2019 78 ceitual entre direito e moral, o positivismo dava por estabelecidas duas teses que devem ser cuidadosamente diferenciadas. A primeira afirma que as normas de validade são estabelecidas autonomamente por cada sistema normativo, de modo que uma norma jurídica não deixa de ser jurídica pelo fato de ter conteúdo imoral, da mesma maneira que uma norma moral não deixa de ser moral, quer dizer, válida conforme o correspondente sistema moral, pelo fato de seu conteúdo ser antijurídico. A segunda aduz que a constatação que um sujeito – um cidadão ou um juiz – realiza em sua consciência, vendo em certa norma uma norma efetivamente jurídica, não vale enquanto critério de resolução do possível conflito moral que a esse sujeito se apresente se, ao mesmo tempo, entende que o mandamento contido nessa norma jurídica é contrário ou, mais ainda, radicalmente con- trário à moral que adote como objetivamente verdadeira ou que simples- mente aplique como guia de sua consciência. Que uma norma seja juridi- camente válida significa tão só que, conforme o direito, há uma obrigação jurídica de se seguir tal norma. Mas isso não passa de mera tautologia, pois se afirma que as normas jurídicas obrigam juridicamente. Da mesma maneira, as normas morais obrigam moralmente. Um positivismo como o de Kelsen nunca deu um passo a mais para afirmar a existência de uma obrigação moral de obedecer às normas jurídicas, do mesmo modo que não há para o sujeito uma obrigação jurídica geral de obediência às normas morais. Se sob o nazismo existiram pessoas que entenderam que estavam moralmente compelidas a obedecer às normas jurídicas do dito regime, tal se deu pela alta estima moral em que o tinham ou porque, em sua particu- lar consciência, tais preceitos jurídicos eram dignos de obediência devido ao seu elevado conteúdo de justiça, mas jamais se poderá defender, sem grave desfiguração da realidade, que Kelsen sustentou que se está moral- mente obrigado a render obediência às normas desse ou de qualquer outro direito pelo simples fato de serem jurídicas. Era o outro positivismo – o estatista, o do direito do Estado – que, sobre a base da qualificação metafí- sica e moral do Estado, pensava que os cidadãos – meras células da comu- nidade estatal e nacional – deviam subordinar-se plenamente aos desígnios dessa suprema instância político-jurídica. É esse positivismo metafísico e autoritário que vemos nos textos dos autores do nazismo. Só esse culmina na exaltação comunitária e na submissão do cidadão ao poder.
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