Revista da EMERJ - V. 21 - N. 2 - Maio/Agosto - 2019
R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 21, n. 2, p. 52-118, Maio-Agosto, 2019 74 por motivos pragmáticos e políticos, a tese antipositivista de que a moral condiciona a validade das normas jurídicas. Todavia, dessa maneira crista- lizou-se para a posteridade a falsa impressão de que o positivismo seria o responsável pelas arbitrariedades jurídicas do nazismo. Desse modo, uma simples estratégia para permitir a condenação, ainda que apenas moral, de certos juízes e funcionários nazistas transformou-se em acusação contra o positivismo. 54 Na realidade, o que se pretendia era desautorizar o forçado argumento positivista utilizado pelos réus, não lançar sobre o positivismo as culpas pela atuação de juízes e funcionários que sempre abominaram Kelsen e qualquer positivismo. Ora, a estratégia de Radbruch tem uma carga ambivalente. Ao insistir em que os juízes estavam obcecados pela influência do positivismo e eram, em consequência, incapazes de entender que o grau de injustiça daquele direito os dispensava de toda obrigação ju- rídica ou moral de aplicá-lo, Radbruch ofereceu-lhes o argumento decisivo para afirmar que, ainda que suas ações fossem objetivamente antijurídi- cas, faltava-lhes o elemento subjetivo do dolo e, portanto, não deviam ser condenados, ao menos quando tivessem se limitado a aplicar a legislação nazista em seus próprios termos, sem deles se afastar. 55 Segundo Radbruch, a promulgação formalmente válida de uma lei é condição necessária de sua validade, mas não condição suficiente. Também se requer que o conteúdo da norma legal não vulnere certos princípios morais presentes na consciência da humanidade emdeterminadomomento histórico e que, no século XX, sintetizam-se na ideia de direitos humanos. Nos direitos humanos expressa-se contemporaneamente uma ideia de justiça que nenhum direito positivo pode negar sem perder sua validade, a morte de um filho na guerra. Permanece Kaufmann com a dúvida, pois Radbruch nunca explicou por escrito e nem a seus discípulos as razões de sua decisão (KAUFMANN, 1987, p. 145). 54 Como assinala Thomas Mertens, essa doutrina de Radbruch estaria mais motivada por necessidades práticas – a de permitir as condenações dos nazistas – do que por propósitos teóricos. Tratava-se de evitar que se estendesse um véu de impunidade sobre o passado (MERTENS, 2003, pp. 278-279). 55 PAULSON, 1994, p. 327 et seq . e 338 et seq . Assim podemos entender as palavras de Monika Frommel quando sintetica- mente aduz que: “Após o estabelecimento do nazismo, Radbruch se cala. Depois de 1945, ele tenta compreender o melhor possível e condenar o menos possível os que se adaptaram” (FROMMEL, 1989, pp. 45-46). Ortiz de Urbina ressaltou que: “Lo más grotesco es que Radbruch, víctima personal de la persecución nacional-socialista, acabó facilitando la transición al nuevo estado de cosas de numerosos juristas que, por las circunstancias que fuera, manifestaron su apoyo al régimen nazi” (URBINA, 2007, p. 89). Nessa obra de Ortiz de Urbina as teses de Radbruch são rebatidas de maneira muito com- petente, tanto a afirmação empírica de que entre os juízes alemães dominava o positivismo quanto a tese conceitual de que o positivismo lhes impedia de se opor aos desígnios do nazismo (URBINA, 2007, p. 77 et seq .).
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