Revista da EMERJ - V. 21 - N. 2 - Maio/Agosto - 2019

 R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 21, n. 2, p. 52-118, Maio-Agosto, 2019  73 que não se podia considerar antijurídico seu trabalho de aplicar as normas jurídicas vigentes, por mais horrível que fossem seus conteúdos. Assim, para desautorizar tal argumento, a estratégia que melhor se encontrou foi negar a condição de direito a normas que permitiam, por exemplo, severas condenações por delitos como o de “ofensa à raça” ( Rassenschande ). Se a base das condenações era a autêntica legalidade, não cabia condenar esses juízes como culpados de homicídio ou privação ilícita de liberdade. Mas ao se fazer acreditar que tais normas não eram verdadeiro direito, deixavam os juízes de contar com tal excludente. Radbruch foi o autor que sintetizou para a posteridade a ideia de que um direito injusto continua sendo direito se foi criado conforme os padrões formais e procedimentais estabelecidos no sistema jurídico. Contudo, se o grau de injustiça das normas alcança graus aberrantes, elas perdem sua validade devido à extrema injustiça. Radbruch, que antes do nazismo se havia alinhado nas fileiras positivistas e que durante a guerra permaneceu na Alemanha privado de sua cátedra, 53 abraçava assim, levado 53 Mas não no ostracismo. Em 1934 ele publicou uma biografia de Paul Johann Anselm von Feuerbach; em 1938, a obra Elegantiae Juris Criminalis e, em 1944, Gestalten und Gedanken (HASSEMER, 1990, p. 2). Não olvidemos, tampouco, que seu texto Der Relativismus in der Rechtsphilosophie é de 1934. Nele, Radbruch defende o relativismo diante dessa época na qual se tinha instaurado a fé em “valores absolutos”. Radbruch opõe o relativismo frente ao jusnaturalismo, por ser esta uma doutrina que concebe a existência de uma ideia de direito justo perfeitamente cognoscível e objetiva. Por outro lado, o que se comprova é que em cada sociedade há uma ideia culturalmente determinada do que seja o justo. Entre distintos sistemas de valor não há possibilidade de discernir a verdade sem que haja outro juiz possível além da consciência de cada indivíduo. É exatamente o relativismo que justifica o respeito de cada um à consciência moral dos demais, e Radbruch dá como exemplo de tal atitude a de Kelsen, entre outros. Ante a impossibilidade de saber de modo objetivo o que seria o justo, não há mais do que o direito positivo enquanto meio de coordenação coletiva (RADBRUCH, 1990, p. 17 et seq. ): “O relativismo desemboca no positivismo” (RADBRUCH, 1990, p. 18). Contudo, partindo-se do relativismo não é possível ver na ação do legislador nenhuma suprema verdade, mas mero ato de autoridade. Por isso, “o relativismo desemboca no liberalismo” (RADBRUCH, 1990, p. 19) e “no Estado de Direito”, em que, ademais, o legislador está submetido à lei e vigora a separação de poderes (RADBRUCH, 1990, p. 19). Se a lei não representa a expressão de nenhuma suprema verdade é porque todas as opiniões merecem igual dignidade e respeito. Todos os cidadãos, pensem como pensem, têm de ser tratados enquanto iguais. Em consequência, o relativismo exige um Estado democrático e “a democracia, por sua parte, pressupõe o relativismo”, tal como tem destacado Kelsen “de maneira contundente e convincente” (RADBRUCH, 1990, p. 20). Na democracia pode-se também defender a ditadura, mas não pode a democracia tolerar a renúncia à sobe- rania popular e aí está o limite: “O relativismo é tolerância geral, mas não tolerância frente à intolerância” (RADBRUCH, 1990, p. 21). Devem ser neutralizados todos os poderes irracionais para que se realize o poder das ideias e, portanto, “o relativismo desemboca no socialismo” (RADBRUCH, 1990, p. 21). Radbruch conclui seu escrito assim: “Partimos da impossibilidade de se conhecer o direito justo e acabamos invocando importantes conhecimentos sobre o direito justo. Extraímos do relativismo consequências absolutas, concretamente as tradicionais exigências do direito natural clássico. Por uma via contrária ao princípio metodológico do direito natural, conseguimos fundamentar as exigências objetivas do direito natural: direitos humanos, Estado de Direito, separação de poderes e soberania popular. Liberdade e igualdade, as ideias de 1789, ressurgem a partir da corrente cética na qual pareciam sucumbir. São o indestrutível fundamento do qual podemos nos afastar, mas ao qual sempre temos que retornar” (RADBRUCH, 1990, p. 22). Dificilmente se encontrará uma síntese melhor do que Kelsen escreveu em 1921 na sua obra Essência e Valor da Democracia . Arthur Kaufmann, discí- pulo e biógrafo de Radbruch, pergunta-se porque ele não emigrou quando o nazismo chegou ao poder, dado que nunca comungou com suas ideias. Só passou em Oxford um ano, entre 1935 e 1936. Com a emigração ele teria inclusive evitado

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