Revista da EMERJ - V. 21 - N. 2 - Maio/Agosto - 2019

 R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 21, n. 2, p. 52-118, Maio-Agosto, 2019  63 trina de Kelsen. Por um lado, boa parte dos professores que escreveram textos atrozes de exaltação ao Führer como suprema fonte do direito ale- mão, 20 textos que justificavam a chamada “morte civil” dos judeus e até seu extermínio – e também de outras raças consideradas inferiores, tais como a eslava, os grupos da população considerados degenerados, a exemplo dos homossexuais, e aqueles tidos em geral como inimigos do povo –, di- rão que tudo se deveu a um ofuscamento motivado pelo predomínio que, em suas consciências de exímios juristas, teve o pensamento kelseniano e seu suposto lema de que a lei é a lei, Gesetz ist Gesetz , e que a lei, sob tal ponto de vista, não podia senão ser acatada e rigorosamente cumprida. Por outro lado, havia quem – com Radbruch à frente – buscava uma ma- neira de justificar a reprovação dedicada àqueles juízes e funcionários do Estado que então se escusavam alegando que não tinham feito mais do que cumprir com seus deveres ao aplicar a legislação válida, considerando a convicção de que toda lei é justa e deve ser obedecida, acrescentando que tal crença – que os incapacitava moralmente – fora imposta pelo po- sitivismo dominante. Uns se justificavam culpando Kelsen e outros acu- savam-no questionando as teses kelsenianas sobre a validade das normas jurídicas. Enquanto isso, nos Estados Unidos da América, Kelsen escrevia contra a continuidade do Estado alemão anterior e em prol da tese de que havia nascido um novo Estado sem vínculos jurídicos com os funcioná- rios do anterior regime. 21 Os juristas do regime hitlerista continuaram quase todos em suas cátedras universitárias depois de breves períodos de suspensão ou de sub- missão a caricaturescos processos de desnazificação. 22 Também os que fo- ram juízes, fiscais ou funcionários do Estado sob o nazismo, incluídos os funcionários da polícia e da Gestapo, acabaram retornando a seus cargos 20 RÜTHERS, s/d, p. 127 et seq. 21 Cf. KELSEN, 1945, p. 518 et seq . Para o debate desse momento sobre a continuidade ou não do Estado alemão, com seus vínculos internos com seus funcionários e os externos – em matéria, por exemplo, de tratados internacionais –, cf., em geral, FIEDLER, 1993, p. 333 et seq. 22 “Os numerosos catedráticos de Direito que, depois de 1933, haviam saudado, apoiado, legitimado e sustentado dogma- ticamente a mudança para um totalitário Führerstaat retornaram, com poucas exceções (por exemplo, Carl Schmitt, Otto Koellreutter, Reinhard Höh, Georg Dahm e Karl August Eckhardt), a seus postos, às vezes após uma pequena espera. A grande maioria dos professores de Direito que, depois de 1949, ensinavam e investigavam nas universidades alemães ocidentais havia feito o mesmo antes da derrota, nas mesmas ou em outras universidades da ‘Grande Alemanha’, desde a Universidade Imperial de Estrasburgo até as de Königsberg e Viena. A consequência foi que a história da ciência jurídica e da administração da Justiça sob o nazismo converteu-se, por muitos anos, nos cursos jurídicos da República Federal, em um tema evitado com todo esmero ou tratado só em seus aspectos parciais ‘não perigosos’” (RÜTHERS, 2001, p. 93).

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