Revista da EMERJ - V. 21 - N. 2 - Maio/Agosto - 2019

 R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 21, n. 2, p. 52-118, Maio-Agosto, 2019  62 Chama poderosamente a atenção que duas ideias se mantivessem plenamente vigentes na magistratura e na doutrina alemã de Weimar, do nazismo e das décadas posteriores: a de que o positivismo era rechaçável por seu legalismo e a de que frente à lei deveriam imperar certos princípios substanciais que dão sentido ao direito, os quais, em verdade, devem guiar a decisão judicial. Note-se apenas que os autores e os juízes – muitas vezes os mesmos autores e os mesmos juízes – foram mudando o conteúdo ou a formulação desses princípios à medida que se transformava o regime político em que prosperavam. 18 2.2. Kelsen na doutrina jurídica do nacional-socialismo e do pós-guerra Se, em tempos de Weimar, as teses kelsenianas eram minoritárias e fortemente atacadas pelo estatismo, pelo nacionalismo e pelo autoritaris- mo nostálgico, e se, sob o nazismo, Kelsen era objeto de desprezo geral, 19 tendo sido apelidado de judeu liberal perigoso para a grandeza do Estado alemão e para o “novo” direito de corte racista, a serviço das doentias obsessões da casta dirigente, cheia, por certo, de juristas que faziam qual- quer coisa para ganhar os favores do Führer , depois da Segunda Guerra e da derrota alemã assistiremos à culminação da infâmia, pois se impõem às teses kelsenianas toda a culpa relativa aos despropósitos e às aberrações acontecidas naquele corrupto mundo jurídico. Converter-se-á em lugar comum, até hoje repetido sem reflexão, a imputação ao positivismo kelseniano dos desmandos jurídicos daquela corte de arrivistas unanimemente antikelsenianos. Dois propósitos bem diversos confluem para semelhante atribuição de responsabilidades à dou- 18 Ulfrid Neumann observou muito sutilmente que foi essa insistência nos princípios supralegais o que permitiu a conti- nuidade de uma doutrina que, depois da guerra, permanecia insultando a legalidade formal tal qual antes e amparando-se em fórmulas que se mencionavam sem qualquer atenção a seu conteúdo. Note-se o exemplo do “bem comum”, princípio do qual os mesmos autores faziam uso em tempos de Hitler e depois, como se nada tivesse acontecido, se bem que, em cada ocasião, adaptavam sua interpretação a suas conveniências e as do poder da vez. Depois de 1949, continuaram insis- tindo que a chave do direito estava em uma ordem pré-estabelecida na qual o indivíduo inseria-se como pessoa moral e membro da comunidade (NEUMANN, 1994, pp. 147-148). 19 Na edição de 1939 de uma enciclopédia alemã, a Meyers Lexikon , o verbete dedicado a Kelsen rezava assim, depois da enumeração de algumas de suas obras: “Representante radical da ‘Teoria Pura do Direito’, típica expressão do destrutivo espírito judeu nos anos do pós-guerra no campo da doutrina jurídica e do Estado. Com seu completo esvaziamento de todo conteúdo real em seus conceitos gerais e formais, Kelsen nega toda substância do direito e do Estado. Suas concep- ções destruidoras da comunidade estão, enquanto expressão do niilismo político, em completo contraste com os pontos de vista nacional-socialistas” ( Apud ENGLARD, 1998, p. 183).

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