Revista da EMERJ - V. 21 - N. 2 - Maio/Agosto - 2019
R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 21, n. 2, p. 52-118, Maio-Agosto, 2019 58 por outro, possuiria também natureza fática. Assim, o Estado seria, além de juridicidade e institucionalidade, um ser em si, uma pessoa, um sujeito com identidade própria que mediante normas se regula, podendo se au- tolimitar em suas relações com seus cidadãos. 8 É nesse ponto que Kelsen ataca. Segundo entende, não há no Estado qualquer facticidade pré-jurí- dica, por mais que as ações de órgãos e instituições estatais que o direito constitui tenham uma indubitável dimensão fática. O efeito não pode ser confundido com a causa. As ações do Estado não são ações que, primeiro, o sejam desse sujeito e, além disso, podem ser jurídicas ou antijurídicas. Só são ações estatais porque podem ser jurídicas ou antijurídicas, já que fora do direito não há Estado, apenas dominação fática, ajurídica. Assim, o que pode ser o Estado, qual é o modo possível de sua configuração, onde se radicam suas potestades ou quais são os limites possíveis de seu atuar não são elementos determináveis nem pela natureza das coisas nem por nenhum gênero de força normativa do fático, tratando-se sempre de construtos jurídicos. 9 Não é que o Estado manifeste uma vontade própria 8 Cf. FIORAVANTI, 1979, p. 407 et seq . Fioravanti conclui seu documentadíssimo estudo assinalando que o chamado “método jurídico” da Escola Alemã do Direito Público, culminante em Jellinek, constitui a expressão de uma intenção de neutralizar contradições sociais e políticas, tendo como base a tentativa de pensar a sociedade civil enquanto um todo homogêneo e sua relação com o Estado como mero reflexo natural do povo na pessoa jurídica do Estado (FIORAVANTI, 1979, p. 422). Assim, como explica Badura, foram deixadas à margem as questões referentes ao fim que justifica o Estado, bem como aquelas atinentes às tarefas do Estado, tendo os juspublicistas alemães se interessado somete pela descrição do poder e seus órgãos. Tinha-se por manifesta a legitimidade do Estado, vista como seu produto natural ou essência (BA- DURA, 1996, p. 139). Somente sobre a base dessa relação “orgânica” entre o Estado e a sociedade enquanto comunidade – e não como agregado de indivíduos ao modo liberal – é pensada a Constituição, que é Constituição do Estado, organiza- ção dos órgãos do Estado e das relações do Estado com a comunidade da qual é a suprema expressão (STOLLEIS, 1996, p. 83). Em consequência, a doutrina dos direitos públicos subjetivos, que alcança sua síntese em Jellinek, não supõe uma primeira versão do que, no constitucionalismo do século XX, se entende por direitos fundamentais, pois se acreditava que os direitos dos cidadãos tinham seu fundamento na própria personalidade do Estado. O Estado é depositário do poder, estando assim capacitado para se autovincular juridicamente mediante a concessão de esferas de liberdade aos cidadãos. Não se trata, portanto, de direitos fundamentais que têm seu embasamento no patrimônio moral dos indivíduos, mas sim de direitos atribuídos aos indivíduos pela livre vontade do Estado e que nele encontram sua razão de ser e justificação (FRIEDRICH, 1997, pp. 296-298). Ao se autolimitar mediante normas e outorgar direitos aos cidadãos, o Estado con- verte sua relação com estes em relação jurídica. Contudo, na base – como fundamento primeiro – está o poder do Estado enquanto tal. Das “duas caras” do Estado, a fática (causal ou “natural”) e a jurídica, aquela é a primeira e decisiva. Eis o ponto de partida das críticas de Kelsen (PAULY, 2000, p. 230 et seq .). 9 Dentre a infinidade de citações possíveis, fiquemos somente com uma, retirada da tradução mexicana dos Hauptprobleme : “¿Qué quiere decir el que ciertos actos realizados por determinadas personas físicas hayan de considerarse, desde el punto de vista jurídico, no como actos de estas mismas personas, sino de otra, distinta de ellas? Sencillamente, que se trata de un caso especial de imputación . El substracto de hecho formado por la actividad de estas personas no se les imputa a ellas, sino a otra. Pero, esto no significa que el punto de la imputación se dé en otro hombre. La imputación pasa, por decirlo así, a través de los sujetos agentes físicos y de sus actos psíquicos de voluntad, y no se detiene en otra persona física, como ocurre, por ejemplo, cuando se trata de imputar al padre o al patrono la responsabilidad por los daños causados por los niños o por los empleados. Aquí, todas las líneas de imputación se funden en una sola, situada mentalmente al margen de todo sujeto físico. Los individuos cuyos actos dan base a esta peculiar imputación son los órganos del Estado, y el punto común de confluencia de todas las líneas de imputación que parten de los hechos cualificados como actos de los órganos,
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