Revista da EMERJ - V. 21 - N. 2 - Maio/Agosto - 2019
R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 21, n. 2, p. 52-118, Maio-Agosto, 2019 57 da em evanescentes e fantasmagóricos dados pré-jurídicos. A pura domi- nação fática de um grupo de indivíduos sobre uma coletividade é poder, mas não Estado. A dominação conforme certas normas jurídicas é Estado, mas só porque se institui enquanto sistema jurídico. Nada e nem ninguém tem o direito de imperar enquanto Estado antes ou à margem das normas jurídicas: não há Estado sem normas jurídicas que o constituam. Esse, e não outro, é o significado da afirmação de Kelsen segundo a qual todo Estado é Estado de Direito. A noção de Estado de Direito não é utilizada por Kelsen em sua acepção político-moral ou no senti- do de determinado modelo de organização estatal baseado na separação de poderes, na sua submissão à legalidade e no respeito a certos direitos fundamentais das pessoas. Com a expressão “Estado de Direito”, Kelsen pretendia apenas ressaltar a falta de substância real de todo Estado que se queira à margem e acima do direito, seja qual for o conteúdo desse direito. Não se trata de dotar de legitimidade moral qualquer Estado nem, menos ainda, de fundar certas obrigações políticas dos cidadãos diante de qual- quer forma de Estado e perante suas normas. Kelsen objetiva apenas des- mascarar a pura ideologia de dominação dos cidadãos presente em toda intenção de fazer do Estado uma entidade natural, um bem em si, um ser de raiz metafísica ou a pura emanação de uma comunidade cultural ou nacional. Poderá haver Estados sem essa marca metafísica e providencial que sejam injustos, atrozes ou opressivos, mas só serão Estados sobre a base de um direito, nunca antes disso. E no momento dos cidadãos luta- rem contra essa possível injustiça do Estado, terão avançado um grande passo ao vê-lo só como o que é: uma rede institucional de poderes tecida pelo ordenamento jurídico e que mudará se dito ordenamento for modifi- cado, não havendo essências pré-jurídicas que se deve aceitar e às quais é necessário submeter-se com a passiva atitude de quem aceita fenômenos naturais que estão fora de todo controle humano e, em especial, subtraí- dos à ação política dos cidadãos. A partir dessas considerações é possível compreender melhor a dis- puta de Kelsen com Jellinek e a Escola Alemã do Direito Público, debate que inicialmente parece apenas metodológico e depois acaba por adquirir decisivos indícios de questionamentos ideológicos e políticos. Para Jelli- nek, o Estado teria uma dupla face, quer dizer, uma dimensão dual. Por um lado, o Estado apresentaria uma vertente normativa e institucional;
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