Revista da EMERJ - V. 21 - N. 2 - Maio/Agosto - 2019
R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 21, n. 2, p. 52-118, Maio-Agosto, 2019 56 tecede ao direito, sendo sua base e seu pressuposto ontológico. O direi- to nasce do Estado porque é direito do Estado, ou seja, o conjunto de normas por meio das quais o Estado organiza sua própria vida enquanto “pessoa”, quer dizer, substância supraindividual com traços específicos e definidores – base cultural e “nacional”, tradição particular e missão ou destino que dão seu caráter último e sua razão de ser –, do mesmo modo que o ser humano individual organiza sua vida e seus padrões de compor- tamento a serviço de certa vocação, de um afã de perfeição e, inclusive, de um desejo de transcendência. Por isso, a normatividade jurídica não deve destoar nem em sua dicção e nem em suas aplicações desse fundamento “pessoal” transpessoal, se assim se pode dizer. Em virtude disso, o direito não pode ser senão direito do Estado, o direito que o Estado outorga a si mesmo como instrumento a serviço de sua missão transcendente. Já não é o monarca absoluto que assevera “o Estado sou eu”; é o próprio Estado, com vocação absoluta, aquele que, como síntese de sua missão e sua iden- tidade, afirma que o Estado é o Estado e que tudo quanto lhe pertence – território, população e poder –, pertence-lhe por razões substanciais – por natureza –, inclusive seu sistema jurídico. Não são as normas jurídicas que constituem os poderes do Estado; é o poder do Estado, como eixo de seu ser, que cria as normas mediante as quais esse ser estatal se autorregula e regula suas relações com os cidadãos. A teoria do Estado de Kelsen golpeará o núcleo de tal estatismo. 5 Para Kelsen, como é bem sabido, o Estado não é mais do que o reverso de um sistema jurídico, ou seja, o Estado não é mais do que uma rede normativo-institucional constituída pelo próprio direito. O Estado não tem substância própria e pré-jurídica; seu território é marcado pelo espaço geográfico em que vigora seu sistema jurídico, conforme as determinações desse mesmo sistema; sua população é a que, como conjunto de destina- tários de suas normas, o sistema estabelece; seu poder não é outra coisa que o conjunto de instituições cujas competências o dito sistema define. 6 Fora dessa realidade tangível do Estado não resta mais do que ideologia 7 e metafísica a serviço de uma vontade de dominação que se pretende basea- 5 Pode-se ler uma perspicaz análise do estatismo em Jellinek e na posterior doutrina do Direito Público alemã até os tempos da Lei Fundamental de Bonn em KERSTEN, 2000, p. 9 et seq . 6 KELSEN, 1979a. 7 KELSEN, 1979a, pp. 290-291.
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