Revista da EMERJ - V. 21 - N. 2 - Maio/Agosto - 2019
R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 21, n. 2, p. 52-118, Maio-Agosto, 2019 54 alegando a suposta tese kelseniana de que a lei é a lei e como tal deve ser acatada e aplicada pelos operadores do direito, deixando os juristas alemães indefesos diante das aberrações jurídicas do nacional-socialismo. Tratava-se de uma estratégia defensiva, justificativa e de auto-exculpação. Diz-se que o predomínio do kelsenismo na doutrina jurídica da época de Weimar haveria adubado o terreno para que, nos tempos do nazismo, os juristas não pudessem tomar plena consciência da ilegitimidade e da radical injustiça daquelas normas. Mas um mínimo de rigor no exame da situação jurídico-doutrinária presente na República de Weimar e na época de Hitler demonstra, sem margem de erro, que todos esses pressupos- tos são rigorosamente inexatos, ou seja, são mentiras deliberadas, escusas sem mais razão de ser que o desejo de livrar de responsabilidade autores ou funcionários que, diga-se de passagem, nunca foram kelsenianos; aliás, bem ao contrário. 2.1. Kelsen e Weimar A Constituição de Weimar nasceu e vigorou em um contexto social, político e econômico extremamente complexo. 3 Os alemães dotaram-se de uma Constituição própria de um autêntico Estado de Direito, mas sua doutrina jurídica continuava ligada ao modelo do direito de Estado. A grande contraposição daquele tempo é Estado de Direito versus direito de Estado. 4 A chamada Escola Alemã do Direito Público de Gerber, Laband e Jellinek havia realizado um gigantesco esforço para construir uma teoria do Estado adaptada às mudanças históricas e, especialmente, ao declínio do modelo anteriormente vigente nos territórios alemães, de forte marca senhorial e quase feudal. A velha ordem social e política, caracterizada pela forte hierarquia e baseada na supremacia das grandes famílias dirigentes e de grupos nobiliários, tinha que ser substituída por um Estado novo, de base legal, com capacidade e meios pessoais e jurídicos para governar de modo efetivo tanto os territórios que começavam sua industrializa- ção quanto os que vinham sentindo os ecos tardios da Revolução France- sa. Mas essa transição doutrinária foi levada a cabo sem se prescindir do elemento autoritário, pois o Estado era visto enquanto uma instituição 3 Uma magnífica síntese da história política da República de Weimar, com suas dificuldades jurídicas e constitucionais, pode ser lida em WAGNER, 2004, pp. 9-115. 4 Sobre essa contraposição essencial, cf. MÜLLER, 1979, p. 309 et seq . e WALTHER, 1989, p. 325 et seq.
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