Revista da EMERJ - V. 21 - N. 2 - Maio/Agosto - 2019
R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 21, n. 2, p. 52-118, Maio-Agosto, 2019 53 da visão jurídica de Kelsen a responsável por consequências que, de modo algum, seguem-se dela ou dos propósitos do autor. Três são as puras falsidades que, sobre Kelsen, tem-se lido e ouvido em muitas ocasiões: 1) que sua teoria da interpretação e aplicação do di- reito equipara-se com o positivismo do século XIX da Escola da Exegese ou da Jurisprudência dos Conceitos, dado que Kelsen veria a decisão ju- dicial enquanto mera subsunção dos fatos à norma, fabricada com pleno automatismo e sem ir além da conclusão de silogismos elementares; 2) que Kelsen propugna ou convida à obediência judicial e cidadã ao direito injusto, confundindo obrigação jurídica e obrigação moral em nome do positivismo ideológico; e 3) que a teoria jurídica kelseniana está imbuída de autoritarismo estatista, sendo seu predomínio imputável à atitude de obediência cega e entusiasta que tantos teóricos do direito prestaram às aberrantes ordens do nazismo. Semelhantes tergiversações, convertidas em lugares comuns nas ex- plicações de tantos jusfilósofos, hão de ter alguma explicação, além do fato indubitável da ignorância de algum professor precipitado, preconceituoso e pouco dado à leitura atenta. A tese que aqui sustentaremos é que as ditas falsificações do pensamento kelseniano e de seus efeitos práticos devem-se a interesses concretos presentes em certos momentos históricos específi- cos: a República de Weimar, a época do nazismo e o contexto político e jusfilosófico posterior à Segunda Guerra Mundial. Assim, repassaremos brevemente esses três marcos históricos e, posteriormente, analisaremos a falta de fundamento das três citadas falsidades. 2. As armadilhas da História: Kelsen na teoria jurí- dica alemã Foi a doutrina alemã do pós-guerra que responsabilizou a teoria de Kelsen pela submissão dos juristas aos ditames normativos do nazismo, 2 2 Fabian Wittreck trata essa imputação de responsabilidade ao positivismo como a “lenda” que constitui “o mito fundante da jusfilosofia alemã ocidental do pós-guerra”. Tais mitos fundantes servem para aglutinar uma disciplina e nela repartir as etiquetas de cientificidade e anticientificidade. No caso alemão, o mito foi o alicerce necessário ao renascimento do jusnaturalismo de base religiosa. Mas a “lenda” da responsabilidade do positivismo pode ser considerada completamente superada pelo exame histórico, já que estudos como os de Rüthers e Rottleuthner demonstraram não só que o nazismo distanciou-se verbalmente do positivismo da maneira mais veemente, negando-lhe toda compatibilidade com o povo ariano, senão que, além disso, as estratégias que sob o nazismo se colocaram em marcha para legitimar seus crimes são indubitavelmente antipositivistas. Cf. WITTRECK, 2008, p. 1 et seq. Outros autores abordam a “fábula” ou o “embuste” do positivismo ( Positivismusmärchen ) para referir-se a essa descomunal tergiversação da realidade histórica. Cf., v.g., RÜTHERS, 2001, p. 93.
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