Revista da EMERJ - V. 21 - N. 2 - Maio/Agosto - 2019
R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 21, n. 2, p. 216-237, Maio-Agosto, 2019 224 No hodierno arcabouço constitucional brasileiro sobrepaira o prin- cípio da dignidade da pessoa humana, como um dos fundamentos da Re- pública, a orientar todo o ordenamento com a inderrogável função de in- terpretação, integração e limitação de todas as normas. O posicionamento central da pessoa, naquela forma entendida, como epicentro axiológico da ordem constitucional 28 , verdadeira razão de existência e manutenção dessa, exsurge no limiar do fracasso do sistema jurídico de cunho liberal burguês 29 , notadamente oitocentista, que ingente à autonomia patrimonial, impunha a preponderância dos institutos interprivados baseados primor- dialmente na prevalência da propriedade – a superação de tal individu- alismo, paulatinamente apresentou-se por meio da repersonalização ou despatrimonialização 30 . Destarte, pode-se dizer que a antropologia jurídica baseada no indi- vidualismo, consubstanciada em regime positivista, cuja ideia de liberdade adstringia-se a autonomia patrimonial frutificou as ignomínias 31 advindas dos postulados que se consagraram como manifestação jurídica do racio- nalismo moderno, infligindo a oxigenação e o renovo desses conceitos clássicos, e mormente da autonomia, calcorreando decididamente no es- tabelecimento do cânone da dignidade da pessoa humana 32 como baluarte de proteção integral do indíviduo. 28 SAMENTO, Daniel. A ponderação de interesses na Constituição Federal . Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002. p. 59-60. 29 “Se o Estado de Direito, iluminista e racional, mostrou-se insuficiente para a proteção da coletividade frente ao totali- tarismo mais abjeto, tornou-se necessário abandonar a legalidade em sentido estrito, permissiva de arbitrariedades e dita- duras, e rumar em direção a terrenos mais seguros, nos quais os princípios da democracia, da liberdade e da solidariedade não possam jamais ser ignorados”. In: MORAES, Maria Celina Bodin de. Na medida da pessoa humana: estudos de direito civil constitucional. Rio de Janeiro: Editora Processo, 2016. p. 40. 30 “Despatrimonializar não significa esvaziar a carga valorativa da tutela dos interesses patrimoniais, mas sim, funciona- lizá-la de modo que sejam asseguradas as condições materiais para o desenvolvimento da personalidade”. In: MORAES, Maria Celina Bondin de; CASTRO, Thamis Dalsenter Viveiros de. A autonomia existencial nos atos de disposição do próprio corpo . Revista Pensar, v.19, n.3, p. 779-818, set./dez. 2014. p. 788-793. 31 A insuficiência da teoria positivista quando passamos do terreno das abstrações para o da práxis materializou-se, no que se pode mencionar os mais vultoso eventos, duas guerras de ordem global, assim como levou a cabo regimes totalitários, nos quais os homens são instrumentos para atender aos fins do Estado. In: KONDER, Carlos Nelson. O consentimento no Biodireito: os casos dos transexuais e dos wannabes. Revista Trimestral de Direito Civil: RTDC, v.15, p.41-71, jul./set. 2003. p. 54. 32 Em que pese a utilização da expressão já consagrada, explica-nos Rodrigo Pereira que a expressão é uma criação da tradição doutrinária kantiana produzia no século XX, sem, todavia, ter sido exatamente produzida pelo prussiano que em sua obra Fundamentação da Metafísica dos Costumes utilizou o epíteto “dignidade da natureza humana”. Em passo seguinte, Pe- reira assevera ser mais adequada a expressão utilizada pelo filósofo por indicar “o que se esta em questão quando se busca uma compreensão ética – ou seja, da natureza do ser humano”, refletindo a essência humana. In: PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Princípios Fundamentais norteadores do Direito de Família. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 96.
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