Revista da EMERJ - V. 20 - N. 3 - Setembro/Dezembro - 2018
R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 20, n. 3, p. 70 - 87, Setembro-Dezembro. 2018 83 Em seu quadragésimo e último livro, Zygmunt Bauman, sociólogo polonês radicado no meio acadêmico inglês, tendo lecionado na Univer- sidade de Leeds até o falecimento, nonagenário, no início de 2017, sinte- tizou que “A estrada para as guinadas do futuro parece sinistramente uma trilha de corrupção e queda. Talvez a estrada de volta, aquela para o pas- sado, ainda tenha a chance de se tornar uma trilha de limpeza dos estragos cometidos pelos futuros toda vez que eles viraram presente...” (Retrotopia, p. 12. Rio de Janeiro: Ed. Zahar, 2017, trad. de Renato Aguiar). Para Bauman - antes famoso por haver cunhado o conceito de li- quidez dos valores e instituições da sociedade consumidora contemporâ- nea, como sinônimo de fluidez e inconsistência, o que deu nome a vários de seus livros (“amor líquido”, “medo líquido”, “modernidade líquida”, “tempos líquidos”, “vigilância líquida”) -, retrotopia “é um derivativo que compartilha com o legado de Thomas More a fixidez num topos territo- rialmente soberano: uma base sólida que, segundo se crê, fornece e otimis- tamente garante um mínimo aceitável de estabilidade; e, por conseguinte, um grau satisfatório de autoconfiança. Entretanto, a retrotopia difere do seu legado ao aprovar, absorver e incorporar as contribuições/correções supridas por seu predecessor imediato, a saber: a substituição da ideia de ‘perfeição suprema’ por uma hipótese de incompletude e dinamismo en- dêmico da ordem que ela promove, permitindo, por conseguinte, a pos- sibilidade (bem como a desejabilidade) de uma sucessão infinita de mu- danças posteriores, as quais aquela ideia a priori deslegitima e obstaculiza. Fiel ao espírito utópico, a retrotopia deriva seu estímulo da esperança de reconciliar, finalmente, segurança e liberdade, feito que nem a visão origi- nal nem sua primeira negação tentaram alcançar, ou, se tentaram, fracas- saram” ( op. cit. , p. 14). O século XX começou bafejado pela utopia de revoluções ideológi- cas, industrial e agrícola, bem como pela consagração internacional de su- cessivas gerações de direitos e garantias fundamentais (individuais, sociais, ambientais), tudo amparado por um positivismo jurídico exacerbado, pro- duzindo códigos, estatutos normativos, regras gerenciais e operacionais em profusão, a embalar o milenar sonho humano de retornar ao paraíso ou de estabelecer a bem aventurança na terra promotora da felicidade, fundada na dignidade da pessoa humana. O século XX acabou com uma inquietante nostalgia, na medida em que à crença em um mundo equili-
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