Revista da EMERJ - V. 20 - N. 3 - Setembro/Dezembro - 2018
R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 20, n. 3, p. 59 - 69, Setembro-Dezembro. 2018 69 tivemos no século XIX não a concorrência mas o predomínio de um poder punitivo doméstico. Para legitimar essa concentração de força, o discurso grego apela aos campos já legitimados da educação e da medicina: como pode alguém opor-se ao aprimoramento ou à cura dos cidadãos? Sobre o sofrimento punitivo, quase nada. Sobre o uso puramente político da pena, ou seja, por pura conveniência da cidade, uma curiosa atitude que alcançará a mo- dernidade: ignorar sua natureza punitiva. Quando Aristóteles estuda as monarquias que se conservam recorrendo ao rigor, aconselha “abaixar os personagens mais eminentes tanto quanto for possível e desfazer-se dos mais hábeis” 56 . Mas como é mesmo que o monarca “se desfaz dos mais hábeis”?! Por causa de uma dúvida religiosa muito hábil, Atenas desfez-se de Sócrates. Nós constataremos que na fundação moderna da ciência polí- tica a natureza política da pena também foi dissimulada. Por fim, o contra- ponto expiatório-retributivo socorre prestamente o despautério concreto das utilidades punitivas, como uma espécie de escada de Jacó que religa o sofrimento penal à ordem divina. Olhando de perto essas primeiras ma- nifestações, o que hoje chamamos de teorias absolutas e relativas da pena não exprimem uma oposição, mas uma complementação. Se “desfazer-se dos mais hábeis” não puder fundamentar-se na educação ou na medicina, basta introduzir uma impureza contaminante e o assunto está liquidado. O legado de uma crença religiosa na pena e em seus dotes mágicos está aí, dois milênios e meio depois, diante de nossos olhos, tão forte quanto na Grécia. v 56 Política, XIX.
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