Revista da EMERJ - V. 20 - N. 3 - Setembro/Dezembro - 2018

 R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 20, n. 3, p. 59 - 69, Setembro-Dezembro. 2018  68 gava a – aliás caríssima – cicuta ao condenado. Mas, para brincarmos com palavras de Foucault, a cidade em certo sentido os deixava morrer, impon- do coercitivamente condições negativas para sua sobrevivência. Se nos recordarmos das características do exílio, da poiné, e de uma pena chamada atimia que, como a futura capitis deminutio romana, admitia graus na redução da capacidade jurídica do sujeito (quando total, implicava confisco de bens e proscrição da cidade, cominada a morte em caso de retorno; quando par- cial, perda do precioso direito de dirigir-se à assembleia), seremos tentados a pensar que na gestão de conflitos criminalizados a polis levou a sério o oráculo de Delfos, e organizou-se de sorte a não parecer, também ela, uma homicida cujo miasma contaminaria seu povo e suas próprias muralhas. E eis como o gênio grego logrou extrair de um princípio expiatório-retribu- tivo tão propício a fundamentar massacres punitivos e mesmo genocídios, como a história da pureza nos revelaria, uma orientação que modelou nes- te sentido negativo suas penas. Talvez resida aí o vestígio de um dilema moral: quando a cidade se apropria da força imanente à vingança privada para convertê-la em direito está impedida de reproduzir o delito. A futura proscrição da pena de crucificação, decorrente da conversão de Constan- tino, demarcaria o fim desse estilo executório, e os sistemas penais cristãos matariam comissivamente. A polis grega clássica constitui o lugar histórico em que a lei procura pioneiramente desvencilhar-se do divino e sobrepujar o privado-senhorial. Ao contrário de experiências mais arcaicas, como a mesopotâmica – recor- demos a invocação de tantos deuses do panteão sumério na introdução da coletânea de Hammurabi, ele próprio delegado do deus Marduk para fazer justiça aos povos – agora a pretensão é de que a lei seja o rei, como disse Píndaro. O juramento dos juízes principiava por um “votarei de acordo com a lei” 55 . A lei escrita, este “senhor invisível” como se disse então, era em Ate- nas a encarnação discursiva da própria democracia, que após a Constituição de Clístenes rompe definitivamente as estruturas de castas familiares e con- solida o assembleísmo. A força da vingança privada e da inexorável expiação religiosa, recicladas como um primitivo poder punitivo, não se circunscreve às ofensas contra a organização política, mas reivindica o castigo do parri- cídio e do sacrilégio, instituindo tensas disputas que se reapresentarão em inúmeras passagens. Para termos uma ideia da longa duração dessa disputas, olhemos para nós mesmos, que sob o modo de produção escravista colonial 55 Ésquines, Contra Ctesifonte.

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