Revista da EMERJ - V. 20 - N. 3 - Setembro/Dezembro - 2018
R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 20, n. 3, p. 59 - 69, Setembro-Dezembro. 2018 64 pública, que a lei escrita está instalando na polis , sofreria contudo a drástica interferência de uma crença religiosa que futuramente se reeditaria, sob outras faces e pretextos, nas políticas punitivas ocidentais. Alheia à épica homérica, a crença de que o homicídio gera um esta- do de impureza no sujeito que o praticou, e que essa mácula pode conta- minar ( miasma ) outras pessoas e mesmo toda a cidade até que ocorra sua purificação, tem origem religiosa no culto de Apolo em Delfos 29 . Platão preconizava que mesmo o autor de homicídio justificado (ocorrido numa competição de ginástica ou num treinamento bélico, como o “exercício de dardo sem couraça”) deveria purificar-se “como orienta a regra de Delfos” 30 . Na Tebas do rei Édipo, onde “rebanhos definham nos pastos, filhos não sobrevivem ao parto (...) e o deus maléfico da peste devasta a cidade” por causa da impureza provinda do homicídio impune de Laio, Creonte retorna de Delfos com a seguinte orientação: “Apolo ordena, ex- pressamente, que purifiquemos esta terra da mancha que ela mantém; (...) urge expulsar o culpado, ou punir com a morte o assassino, pois o sangue maculou a cidade” 31 . Nas Eumênides, a tragédia em que a superação da vingança inexorável é debatida, o deus Apolo explica ter sido ele pró- prio que purificou Orestes “do sangue derramado” 32 . Perante tal crença, o exílio adquire nova função, que Dionísio expõe claramente em As Ba- cantes: “Os ofensores deixarão esta cidade para apagar a nódoa vinda do crime” 33 . Até mesmo os ossos já enterrados de homicidas não purificados deveriam ser removidos da cidade, como ocorreu após o julgamento dos participantes (ainda vivos) do massacre dos companheiros de Cilon 34 . A crença de que o delito cria um estado de impureza para o sujeito, capaz de contaminar os outros ou a própria sociedade política, antes de mais nada produz e legitima poder punitivo. Como notou a antropóloga Mary Dou- glas, “esses pretensos perigos” (derivados da impureza) “são uma ameaça que permite a um homem exercer sobre outro um poder de coerção” 35 . Mas, sobretudo, essa crença alavanca uma concepção retributivo-expiató- 29 A idéia de impureza, para Louis Gernet, seria anterior ao culto de Apolo ( Recherches sur le développement de la pensée juridique et morale en Grèce , Paris, 2001, ed. Albin Michel, p. 52). 30 As Leis, IX. 31 Ésquilo, Édipo-Rei. 32 Ésquilo, Eumênides, 755-756. 33 Eurípedes, As Bacantes, 1753-1754. 34 Aristóteles, Constituição de Atenas, I (“os autores foram expelidos de suas sepulturas e seus descendentes partiram em exílio perpétuo”); Plutarco, Sólon, 12. 35 Douglas, Mary, Pureza e Perigo, trad. S.P. Silva, Lisboa, 1991, ed. 70, p. 15.
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