Revista da EMERJ - V. 20 - N. 3 - Setembro/Dezembro - 2018

 R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 20, n. 3, p. 59 - 69, Setembro-Dezembro. 2018  63 não mais cabia vingança. Biscardi viu na poiné , em síntese, uma alternativa à vingança 24 ; nessa alternativa reside um acreditado radical da palavra pena . Na famosa cena esculpida no escudo de Aquiles, descrito por Homero, o debate entre as partes concentra-se no pagamento ou não da multa “ de um recente homicídio; afirma ao povo / Um tê-la pago à risca, o outro o nega, / Produzir ambos testemunhas querem ” 25 . O exílio exprimia também uma ruptura dos laços familiares do exilado, com o efeito de desfigurar a solidariedade pas- siva de seus parentes no delito dele. Aproximemo-nos agora da cidade, e por certo de Atenas. Olhe- mos para essa lei de Dracon sobre o homicídio 26 , que de um lado procura manter a arraigada tradição e por outro pretende controlar e concentrar a teia de coações que a vingança privada tece. Enquanto os antigos juízes lavrados no escudo de Aquiles decidem se a poiné foi ou não paga, a cidade tem que avançar a pergunta, para saber se o homicídio realmente ocor- reu: doravante, será imprescindível que o basileu promova uma instrução ( anácrisis ) para colecionar provas que permitam estabelecer a natureza do homicídio ocorrido. A vingança privada terá extensa sobrevida, e mesmo antes da cidade ela já era exercida como dispositivo fundado em deveres religiosos e familiares comunitários. Mas para que o autor de homicídio premeditado fosse morto, agora era preciso que o Areópago decidisse. O homicídio involuntário – conceito que incluía o homicídio de ímpeto, tal qual já supunham personagens de Homero 27 – era punido com uma pena talvez algo desacreditada, frequentemente confundida com oportuna fuga: o exílio. Esse descrédito foi percebido por Biscardi na norma que equipa- rava a morte do exilado submisso ao homicídio de um ateniense 28 . A lei de Dracon também previa a poiné , caso aceita pela unanimidade dos parentes do morto, como alternativa não só da vingança mas também do exílio, equivalendo a um perdão. A lei declarava ainda impunível o homicídio pra- ticado em defesa própria ou do patrimônio. Essa proto-história da pena 24 Biscardi, Arnaldo, Diritto Greco Antico , Varese, 1982, ed. Giuffrè, p. 278. 25 Ilíada, canto XVIII, vv. 420 a 432 (trad. M.O. Mendes, S. Paulo, 1958, ed. Atena, p. 347); em outras traduções, XVIII, 496 a 508. 26 Cf. Biscardi, op. cit., pp. 284 ss.; Cantarella, Eva, op. cit., p. 61. 27 Pátrocles se lastima por ter, em meio a um jogo de dados, matado o adversário, da seguinte forma: “Porque, ao jogo irritado, involuntário / Matei sem tento o filho de Anfidamas” (Ilíada, trad. O. Mendes, XXIII, 74 e 75). Aristóteles ensinava que “os atos devidos à cólera não são premeditados (...) pois quem inicia a ação não é a pessoa que age sob o efeito da cólera, e sim aquela que encoleriza o agente” (Ética a Nicômacos, V, 1135b). 28 Op. cit., p. 286.

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