Revista da EMERJ - V. 20 - N. 3 - Setembro/Dezembro - 2018

 R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 20, n. 3, p. 59 - 69, Setembro-Dezembro. 2018  62 No léxico dos poemas homéricos, themis designa qualquer das nor- mas consuetudinárias (ou o conjunto delas) que, tendo origem nas religiões ou no grupo familiar ( genos ), prescrevem condutas seja para o cotidiano, seja para ocasiões excepcionais: sepultar os mortos, conceder hospitalida- de, oferecer sacrifícios aos deuses etc 19 . Já a palavra dikê aproxima-se mais da ideia de equidade ou mesmo, em certo sentido, de justiça, significando a solução para um conflito concebível na interação entre sujeitos jurídicos igualmente capazes. Olhemos para o tratamento jurídico do homicídio no universo de Homero. Da mesma forma que observaremos, mais de um milênio depois, no direito germânico antigo, o homicídio anunciado, constituindo frequentemente um imperativo do sentimento de honra e manifestando uma valorizada superioridade física, não era ilícito. Nessas profundezas em que nos encontramos, a força que mais tarde se con- verterá em direito começa por legitimar-se a si mesma: o homicídio do mais forte é ipso facto justo. Seria preciso esperar pelos sofistas para que a legitimidade da força bruta fosse enunciada, com áspera clareza, por Cálicles 20 , argumentando com o décimo trabalho de Hércules, que rouba- ra o gado de Gérion sem indenizá-lo e sem ver-se por isso censurado 21 . Ao contrário do homicídio anunciado, que por vezes assumia tinturas de duelo, o homicídio aleivoso, o homicídio contra hóspede e o parricídio en- sejavam respostas punitivas. A mais arraigada e frequente dessas respostas era a vingança privada, que no mundo homérico configurava “um dever social” 22 . Como observa Eva Cantarella, “vingar as ofensas sofridas não era apenas uma conduta louvável, mas também inevitável, ao menos para aquele que desejava desfrutar do respeito e do prestígio que a voz do povo ( dêmou phêmis ) reconhecia a quem obedecia aos modelos de conduta (...); ao contrário, quem não se vingava era um fraco, um ser desprezível que não merecia qualquer consideração” 23 . A vingança podia ser evitada pelo exílio ou pela multa ( poiné ) – primitivamente, uma oferenda in natura , mais tarde em dinheiro – aceita pelos familiares da vítima; após aceita a poiné , 19 Viviana Gastaldi, op. cit., p. 28. 20 “Mas a própria natureza (...) demonstra que é justo que o melhor esteja acima do pior e o mais forte acima do mais fraco. (...) Na ordem da justiça, o mais poderoso deve dominar o mais fraco e gozar as vantagens de sua superioridade. Que outro direito tinha Xerxes para vir fazer guerra à Grécia, ou o seu pai aos Citas?” – cf. Platão, Górgias, 483d; no mesmo sentido, Trasímaco: “nas cidades, são os fortes que governam e fazem as leis” (Platão, República, I). 21 Platão, Górgias, 484 b e c. 22 Cantarella, Eva, Les Peines de Mort en Grèce et à Roma , trad. N. Gallet, Paris, 1991, ed. Albin Michel, p. 51. 23 Op. cit., pp. 51-52 e 56. Também Eva Cantarella vê no mundo homérico uma shame culture (p. 52, nota 1).

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