Revista da EMERJ - V. 20 - N. 3 - Setembro/Dezembro - 2018

 R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 20, n. 3, p. 59 - 69, Setembro-Dezembro. 2018  61 dicional 12 e retomada para a reflexão jurídica por François Tricaud 13 . Ainda que provavelmente não tenha jamais existido um puro sistema de shame culture ou de guilt culture , e sim predominâncias temporais de características suficientes para a identificação de uma ou outra, a distinção parece muito relevante para a história das políticas criminais. Simplificadamente, a cul- tura da vergonha supõe ausência ou fraqueza da ideia de Estado e de suas institucionalizações, implicando uma moral enraizada predominantemente em estruturas familiares, na qual o sujeito, cujo maior temor é a desonra, será reconhecido – ou não – pela adequação de sua conduta a modelos clânicos virtuosos (o sentimento de honra grupal ou individual – timê –, o pudor pessoal e a coragem na batalha – aidos –, a força física – bia – etc). Como frisou Jaeger, “o elogio e a reprovação são as fontes da honra e da desonra” 14 . Pode ser didático, para fixar a distinção entre cultura da ver- gonha e cultura da culpa, pensarmos nas práticas penais germânicas em comparação com as práticas penais canônicas (e muito especialmente a In- quisição). Gastaldi, registrando que o modelo homérico de sociedade cor- responde, em linhas gerais, à cultura da vergonha, observou que “é por isto que (...) os heróis transferiam os seus atos reprováveis (a responsabilidade) aos deuses ou às forças externas ( moira )” 15 . Exemplar dessa transferência é o discurso em que Helena justifica seu adultério perante Menelau 16 . Os poemas de Homero espelham a Grécia dos séculos X e IX a.C.: a invenção da escrita, a partir de um alfabeto provindo do fenício, no qual os gregos introduziriam vogais (e vigente até hoje), segundo os testemunhos conhe- cidos teria ocorrido na metade do século VIII a.C. 17 . Se em Homero temos os dilemas religiosos e morais e as peripécias da aristocracia proprietária e guerreira, em Hesíodo, no final do século VIII a.C. (e pois conhecendo e dialogando com narrativas homéricas) aparece o mundo do trabalho nos campos e aquilo que Jaeger chamou de “fé apaixonada no direito” 18 , que numa passagem – posteriormente interpretada como demanda pioneira por leis estabilizadas pela escrita – criticava abertamente o arbítrio judicial. 12 The Chrysanthemum and the Sword – Patterns of Japanese Culture , Boston, 1946, ed. H. Mifflin. 13 L’accusation – recherche sur les figures de l’agression éthique, Paris, 1977, ed. Dalloz, pp. 147 ss. 14 Jaeger, Werner, Paidéia , trad. A.M. Parreira, S. Paulo, 2003, ed. M. Fontes, p. 31. 15 Op. cit., p. 25. 16 Eurípedes, As Troianas, 1158 ss. 17 De Romilly, Jacqueline, La Loi dans la Pensée Grecque, Paris, 1971, ed. Les Belles Lettres, p. 11. 18 Op. cit., p. 91.

RkJQdWJsaXNoZXIy NTgyODMz