Revista da EMERJ - V. 20 - N. 3 - Setembro/Dezembro - 2018
R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 20, n. 3, p. 59 - 69, Setembro-Dezembro. 2018 60 punitivas no âmbito familiar são arcaicas e, como hoje sabemos, dispo- riam de impressionante longevidade. Integravam elas um direito privado que certamente existiu antes da cidade 5 . É igualmente arcaico o sacrilégio, que poderia desligar seu autor do culto comunitário. A assimilação do ato sacrílego ao delito teria configurado, segundo respeitada opinião, o nascimento do direito penal 6 . Sem dúvida, as práticas punitivas mais tar- dias foram as da cidade – e talvez só em relação a essas se pudesse falar propriamente de poder punitivo . Essa visão é confortada pela explicação aristotélica do surgimento da cidade: “a principal das sociedades naturais é a família”, formada “da dupla reunião do homem e da mulher e do senhor e do escravo”; vem depois “a sociedade que se formou com várias casas chamadas aldeias”; finalmente, “a sociedade que se formou da junção de várias aldeias constitui a cidade” 7 . Platão havia descrito de modo similar a origem da legislação, naquela seleção e compatibilização de diferentes cos- tumes que membros de distintos clãs estabeleciam para o novo governo 8 . Epicuro explicará a cidade mencionando pactos “para não agredir nem ser agredido” 9 . O modelo explicativo de Aristóteles contém uma semente perdida do evolucionismo, enquanto no de Epicuro está uma do contra- tualismo. É muito evidente que as figuras nucleares dessas práticas puni- tivas – o pai, o sacerdote e o rei – se interpenetrariam: o pai é sacerdote nos cultos domésticos e tem súditos nos filhos; o rei é filho de um deus ou ele próprio é um (semi-)deus, a quem Aristóteles recomendava usar do castigo com “cuidado paternal” 10 . Ressalvado o monoteísmo, a tradição judaico-cristã conduzirá essa comistão – que argumentará com o funda- mento divino da realeza – até a modernidade. Quando tentei estudar o inquisidor 11 , recorri à distinção entre cul- turas da vergonha e culturas da culpa, formulada pela antropóloga norte- -americana Ruth Benedict em seu estudo sobre a civilização japonesa tra- 5 Fustel de Coulanges, A Cidade Antiga, trad. J.C. Leite e E. Fonseca, S. Paulo, 1975, ed. Hemus, p. 68. 6 Gastaldi, Viviana, Direito Penal na Grécia Antiga, trad. M.S. Glik, Florianópolis, 2006, ed. F. Boiteux, p. 13. 7 Política, Int. 8 As Leis, III. 9 Os modelos explicativos de Aristóteles e Epicuro em Pérez Martín, Elena, Los Extranjeros y el Derecho en la Antigua Grécia, Madri, 2001, ed. Dykinson, pp. 18 ss. 10 Política, XIX. 11 Matrizes Ibéricas do Sistema Penal Brasileiro, p. 260.
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