Revista da EMERJ - V. 20 - N. 3 - Setembro/Dezembro - 2018
R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 20, n. 3, p. 319 - 343, Setembro - Dezembro. 2018 340 Tão grave quanto o pecado anterior mostra-se a gula , 46 constituída pela apropriação, em estruturas dogmáticas antigas, de novos bens jurídi- cos com elas incompatíveis. Mais uma vez tem-se aqui processo mecânico de subsunção, em que se pretende aplicar regra jurídica isoladamente a hi- póteses fáticas diferenciadas, oferecendo soluções para novos problemas a partir de técnicas com estes dissonantes. Ilustra bem essa tendência a hipótese em que a usucapião extraordinária urbana, prevista para o acesso ao direito fundamental da moradia, foi negada pelo Judiciário ao argumen- to de que a área usucapida seria inferior ao módulo mínimo local, “não constituindo o referido imóvel, portanto, objeto legalizável, nos termos da lei municipal”. Em nome do respeito à lei municipal, portanto, afastou- se a efetivação de direito fundamental do autor, simplificando-se assunto complexo em mera operação matemática. 47 Finalmente, o sétimo pecado capital, a luxúria , consiste no apego ao paradigma das relações patrimoniais – e ao fetiche da propriedade – na análise de questões de natureza existencial. 48 Verifica-se, em consequência, promiscuidade de categorias e conceitos, valorando-se a autonomia exis- tencial com fundamento na lógica proprietária. Na experiência norte-a- mericana, serve de exemplo a hipótese em que a Suprema Corte declarou inconstitucional a instalação de GPS no automóvel do réu, por violação à sua intimidade, invalidando, assim, por ilícita, portentosa investigação criminal que resultara na prisão de poderoso traficante de drogas. 49 O ares- 46 “ Os que o rosto, cantando, têm banhado / De pranto, havendo entregue à gula a vida, / Sobem, na fome e sede, o santo estado. / A fome, a sede sente-se incendida / Dos pomos pelo aroma e por frescura / Das águas, sobre as ramas espargida ” (Purgatório, Canto XXIII, versos 64-69). 47 STJ, REsp 402.792/SP, 4ª T., julg. 26.10.2004). Contra, o TJ/RJ, em sua Súmula da Jurisprudência Predominante, a de número 317, procurando pacificar os entendimentos em torno da concepção majoritária na corte estadual, nos seguintes termos: “É juridicamente possível o pedido de usucapião de imóvel com área inferior ao módulo mínimo urbano definido pelas posturas municipais” (A publicação da Súmula data de 18.08.2014, a partir do julgamento do Incidente de Unifor- mização de Jurisprudência n. 001314964.2005.8 .19.0202, julgamento em 14.4.2014). O STJ alterou seu posicionamento, em boa hora, como se vê no REsp 1.040.296/ES, 4ª T., Rel. p/ Acórdão Min. Luis Felipe Salomão, julg. 2.6.2015, em caso envolvendo a usucapião rural do art. 191 da C.R. Seguiu, nesta linha, o posicionamento perfilhado pelo STF sobre a usucapião extraordinária urbana (RE 422.349/RS, Rel. Min. Dias Toffoli, julg. 29.4.2015). Sobre o tema, com arguta crítica à orientação anterior, v. Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho, Usucapião imobiliária urbana independente de metragem mínima, in Revista Brasileira de Direito Civil , v. 2, out.-dez./2014, pp. 9-29. <https://www.ibdcivil.org.br/rbdc. php?ip=123&titulo=%20VOLUME%202%20|%20Out-Dez%202014&category_id=32&arquivo=data/revista/pdf/ rbdcivil-volume-2.pdf>. Acesso em 4.1.2016. 48 “ De luxúria fez tantas demasias / Que em lei dispôs ser lícito e agradável / Para desculpa às torpes fantasias ” (Inferno, Canto V, versos 55-57); “ Cantaram; cada qual como antes disse / Esposas e maridos, que hão guardado / A fé, que Deus mandou sempre os unisse: / Este modo há de ser, creio, alternado, / Enquanto os rodear a chama ardente: / A chaga por tal bálsamo e cuidado / Há de ser guarnecida finalmente ” (Purgatório, Canto XXV, versos 133-139). 49 United States v. Jones (nº. 10-1259, District of Columbia Circuit, january 23, 2012, disponível em: http://www.supre - mecourt.gov/opinions/11pdf/10-1259.pdf). Acesso em 4.1.2015.
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