Revista da EMERJ - V. 20 - N. 3 - Setembro/Dezembro - 2018
R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 20, n. 3, p. 319 - 343, Setembro - Dezembro. 2018 335 de que a coleta à sua revelia representaria flagrante violação a seus direitos fundamentais. Dentre os argumentos erigidos pela Corte Suprema para deferir a realização do exame, estava o de que não haveria, no caso, colisão de direitos fundamentais, tendo em vista que a placenta seria “lixo bioló- gico” que, após o parto, “não é mais parte do corpo da mãe”. Nessa linha afirmou-se: “Tampouco se diga que a realização do exame fere direito fundamental da extraditanda. Não há qualquer procedimento invasivo na coleta da placenta – que a perícia já qualificou como refugo hospitalar”. Considerou-se como determinante o fato de que o material orgânico já se encontrava “separado da pessoa da paciente”, de modo que não mais lhe pertencia, sendo, portanto, uma espécie de res derelicta , despido das caracte- rísticas próprias do bem jurídico na vetusta concepção romana. 31 Pode-se destacar, ainda, como exemplo paradigmático desta tendên- cia, a evolução jurisprudencial brasileira em matéria de família. 32 Durante algumas décadas no Século passado, qualificou-se a família extramatri- monial como união ilícita, reconhecendo-se, no entanto, incialmente, por questões humanitárias, a relação de emprego estabelecida entre o marido e a mulher dedicada aos serviços domésticos, à qual se assegurava o salário mínimo durante o tempo em que perdurara a convivência abjeta. Poste- riormente, durante quase cinquenta anos, recusava-se ainda a designação de família à união constituída fora do casamento, admitindo-se, todavia, a relação societária de fato, no âmbito do direito das obrigações, estabele- cida entre os companheiros na construção do patrimônio comum, como forma de se evitar o enriquecimento sem causa. Mesmo após a Consti- tuição de 1988, que reconheceu expressamente como entidade familiar a união estável, continuou-se a negar a esta igualdade de tratamento em relação às famílias constituídas pelo casamento, o que só seria admitido, não sem espessa controvérsia (especialmente em matéria sucessória), com a vigência do Código Civil de 2002. O terceiro pecado capital é a ganância do julgador, que pretende re- solver todos os problemas segundo sua própria ideologia. A ganância se 31 A dissonância entre a classificação estática e a funcional dos bens jurídicos é analisada por Gustavo Tepedino, “Livro (eletrônico) e o perfil funcional dos bens jurídicos na experiência brasileira”, in Dário Moreira Vicente; José Alberto Coelho Vieira; Sofia de Vasconcelos Casimiro; Ana Maria Pereira da Silva (Org.), Estudos de Direito Intelectual em homenagem ao Prof. Doutor José de Oliveira Ascensão , Coimbra: Almedina, 2015, p. 269-287. 32 Sobre tal processo evolutivo, v. Gustavo Tepedino, “A disciplina civil-constitucional das relações familiares”, in Temas de Direito Civil , t. I, Rio de Janeiro: Renovar, 2008, pp. 419-443.
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