Revista da EMERJ - V. 20 - N. 3 - Setembro/Dezembro - 2018
R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 20, n. 3, p. 319 - 343, Setembro - Dezembro. 2018 323 1. Realidade social e fenômeno jurídico na com- plexidade do ordenamento A alteração do perfil do Poder Judiciário coincide com a crescen- te solução de controvérsias interprivadas com fundamento em princípios constitucionais nem sempre refletidos na legislação infraconstitucional, cuja aplicação mecânica, no caso concreto, levaria ao sacrifício de valores constitucionalmente relevantes. Daí a necessária reflexão sobre a denomi- nada constitucionalização do direito civil, que se associa à mudança do papel do Código Civil nas relações jurídicas de direito privado. O despertar do Direito Civil (e, por conseguinte, da magistratura) para a vida além do Código, na tentativa de abrir o sistema e buscar o conteúdo normativo dos preceitos codificados a partir do compromisso constitucional da sociedade relaciona-se, por sua vez, a duas circunstâncias históricas que alteraram radicalmente a preocupação da civilística nas últi- mas décadas, relativizando os confins entre o direito público e o privado: (i) A dignidade da pessoa humana alçada a paradigma axiológico das rela- ções privadas; (ii) As novas tecnologias, que alteram fundamentalmente a dogmática concernente à autonomia privada, tanto do ponto de vista sub- jetivo, quanto dos pontos de vista objetivo e formal. Deve-se conceber a constitucionalização do direito civil, portanto, não como o deslocamento topográfico de normas de direito privado para cartas políticas ou trata- dos internacionais, mas como procedimento metodológico de compreen- são do ordenamento em sua complexidade, no âmbito do qual os valores constitucionais se incorporam aos normativos e à própria racionalidade da legislação infraconstitucional. Cuida-se de trajetória que invoca a profunda alteração do papel das codificações atuais em relação ao Códigos dos Séculos XVIII e XIX, den- tre os quais se destaca a primeira codificação brasileira, cujo pensamento cultural ainda povoa o imaginário de muitos doutrinadores na atualidade. Com efeito, o Código Civil de 1916 refletia o pensamento dominante das elites europeias do século XIX, marcadamente individualista e liberal. O indivíduo, considerado sujeito de direito por sua capacidade de ser titular de relações patrimoniais, deveria ter plena liberdade para a apropriação, de tal sorte que o direito civil se estruturava a partir de dois grandes pilares, o contrato e a propriedade, instrumentos que asseguravam o tráfego jurídi-
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