Revista da EMERJ - V. 20 - N. 3 - Setembro/Dezembro - 2018

 R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 20, n. 3, p. 296 - 318, Setembro - Dezembro. 2018  300 indivíduo na estrutura social. No mundo real, a classe, a cor e o acesso a “amigos importantes”, por exemplo, valem muito mais do que a simples condição de cidadão ou cidadã. Desde a mais tenra infância, os brasileiros são socializados para perceber as relações sociais como naturalmente desiguais. Compreende-se como natural que os ricos e brancos utilizem o elevador social, e que os pobres e negros só possam usar o de serviço. Natural que só haja pobres na prisão; e que os ricos fiquem impunes, não importa a gravidade do cri- me cometido. Natural que as autoridades públicas tratem com deferência os poderosos e com prepotência os humildes. Natural que a inviolabilida- de de domicílio se aplique às residências das “pessoas de bem”, mas que nas moradias localizadas em favelas a polícia ingresse quando bem enten- der. Nossas práticas sociais ensinam “a cada um o seu lugar”. Uma frase bem sintetiza essa cultura: “você sabe com quem está falando?” 12 Esse ethos problemático ajuda a compreender o déficit de efetivida- de do princípio republicano no Brasil. Mas ele não justifica qualquer tipo de capitulação fatalista, como se estivéssemos irremediavelmente conde- nados ao atraso. Nosso quadro sociocultural não é imutável e já vem se alterando na direção certa. Prosseguir nessa mudança é um dos maiores desafios para o Brasil contemporâneo. 3. O princípio republicano e seus componentes. O princípio republicano é pilar fundamental da nossa ordem jurídi- ca. Além da inequívoca importância no sistema constitucional, ele possui amplo raio de abrangência, pois se projeta sobre inúmeros domínios e questões. Tal princípio pode incidir diretamente sobre as relações sociais, independentemente de mediação legislativa. E tem relevante função her- menêutica, por traduzir diretriz fundamental para a interpretação e aplica- ção de outras normas constitucionais e infraconstitucionais. Tradicionalmente, a república é concebida como forma de governo, em oposição à monarquia. Nessa compreensão, o princípio trata da orga- nização do Estado. Nada obstante, ele não se esgota nisso, sendo também fonte de direitos e deveres para cidadãos e autoridades. Não bastasse, o princípio republicano apresenta forte dimensão aspiracional: ele desenha 12 Cf. Roberto Damatta. "Sabe com quem está falando?: ensaio sobre a distinção entre indivíduo e pessoa no Brasil". In: Carnavais, Malandros e Heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. 6ª ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1996, p. 181-248.

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