Revista da EMERJ - V. 20 - N. 3 - Setembro/Dezembro - 2018
R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 20, n. 3, p. 296 - 318, Setembro - Dezembro. 2018 299 se fosse sua propriedade privada, submetendo a coisa pública às suas pre- ferências e interesses. O patrimonialismo tem subsistido ao longo da his- tória, a despeito de profundas mudanças políticas, econômicas e jurídicas vividas pelo país, e continua presente nas nossas práticas e mentalidades, 9 conquanto venha sendo cada vez mais questionado e combatido. Associada a esse fenômeno está a predominância da lógica da cor- dialidade, destacada em obra clássica por Sérgio Buarque de Holanda. 10 Tal cordialidade não reside na propalada simpatia do brasileiro, mas na nossa conhecida dificuldade em orientar comportamentos por normas impes- soais de conduta, com a tendência à priorização das relações pessoais e afetivas em detrimento das razões objetivas, inclusive no trato da coisa pública. A cordialidade tem relação direta com o jeitinho, 11 que, no campo jurídico, corresponde à patológica propensão ao excesso de flexibilidade na aplicação de normas jurídicas. Trata-se de buscar a solução para pro- blemas com esperteza e “malemolência”, o que normalmente significa a burla ao direito vigente. Em tal contexto, o brasileiro médio até fica indignado diante de malfeitos antirrepublicanos praticados pelos governantes e autoridades. Mas pratica desvios no seu cotidiano, e nem chega a enxergá-los como problemas éticos: “paga uma cerveja” ao guarda para evitar a multa de trânsito; falsifica a carteira de estudante para obter a meia-entrada no cine- ma; sonega seus impostos sempre que pode. Outro gravíssimo problema sob a perspectiva republicana é a desi- gualdade. Nossa cultura desigualitária, cujas raízes mergulham no passado escravocrata do país, enseja a sobrevivência de compreensão pré-moderna, hierárquica e estamental das relações sociais, em que direitos e deveres são concebidos não em bases universalistas, mas a partir da posição de cada 9 Nesse sentido, as palavras de Raymundo Faoro: "A longa caminhada dos séculos na história de Portugal e do Brasil mostra que a independência sobranceira do Estado sobre a nação não é a exceção de certos períodos, nem o estágio ou degrau para alcançar outro degrau, previamente visualizado. (...) A pressão da ideologia liberal e democrática não quebrou, nem diluiu, nem desfez, o patronato político sobre a nação, impenetrável ao poder majoritário, mesmo na transição aristocrático-plebeia do elitismo moderno. O patriciado, despido de brasões, de vestimentas ornamentais, de casacas ostensivas, governa e impera, tutela e curatela. O poder " a soberania nominalmente popular " tem donos que não emanam da nação, da plebe ignara e pobre. O chefe não é um delegatário, mas um gestor de negócios, gestor de negócios e não manda- tário" ( Os Donos do Poder: formação do patronato político brasileiro. Op. cit., p. 748). 10 Sérgio Buarque de Holanda. Raízes do Brasil. 26ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 139-152. 11 De acordo com Luís Roberto Barroso, "jeitinho identifica os comportamentos de um indivíduo voltados à resolução de problemas por via informal, valendo-se de diferentes recursos, que podem variar do uso do charme e da simpatia até a corrupção pura e simples" ( Um Outro País: transformações no Direito e na Ética na agenda do Brasil. Belo Horizonte: Fórum, 2018, p. 246-247). Veja-se também Keith N. Rosenn. O Jeito na Cultura Jurídica Brasileira. Rio de Janeiro: Renovar, 1998.
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