Revista da EMERJ - V. 20 - N. 3 - Setembro/Dezembro - 2018
R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 20, n. 3, p. 296 - 318, Setembro - Dezembro. 2018 298 movimento insurgente respaldado pela população. Na verdade, o povo não passou de espectador passivo dos acontecimentos de novembro de 1889. É conhecida a afirmação de Aristides Lobo, insuspeito por se tratar de re- publicano histórico e integrante do Governo Provisório formado após a proclamação: “O povo assistiu aquilo tudo bestializado, atônito, surpreso, sem conhecer o que se passava. Muitos acreditavam, sinceramente, que se tratava de uma parada”. 4 Vários fatores históricos contribuíram para o não enraizamento dos valores republicanos nos padrões de sociabilidade vigentes no país. Na nossa organização política, desde o início, o patrimônio público e o das autoridades com frequência se interpenetraram e confundiram. O regime colonial que se instaurou no país representou a antítese do ideário republi- cano, marcado que foi “pela doação de terras públicas aos senhores privados, e pela mercantilização dos cargos públicos” . 5 Desde então, a confusão entre o público e o privado tem sido a tônica, das capitanias hereditárias, passando pelo coronelismo da República Velha, 6 até chegar, na contemporaneidade, aos “feudos” dentro do Estado, atribuídos pelos governos a partidos e lide- ranças políticas como contrapartida pelo seu apoio legislativo, na lógica do nosso degenerado presidencialismo de coalizão. 7 Nesse cenário, tem vicejado o patrimonialismo, 8 que se caracteriza pela circunstância de governantes e agentes públicos tratarem o Estado como 4 Cf. José Murilo de Carvalho. Os bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi . São Paulo: Companhia das Letras, 1990. 5 Fábio Konder Comparato. As Oligarquias Brasileiras: Visão Histórica . São Paulo: Contracorrente, 2017, p. 18. 6 Sobre o tema, veja-se a obra insuperável de Vitor Nunes Leal. Coronelismo, enxada e voto: o município e o regime represen- tativo no Brasil. 6ª ed. São Paulo: Alfa-Ômega, 1993. 7 A expressão "presidencialismo de coalização" é frequentemente empregada para retratar a dinâmica real de funcio- namento do sistema político brasileiro. O presidencialismo de coalizão decorre da necessidade de obtenção de apoio legislativo para o Presidente, para que este consiga governar. No presidencialismo, tal apoio não é uma exigência jurídica para que os governos se mantenham, diferentemente do que ocorre no parlamentarismo. Porém, sem o apoio, na prática, os governos ficam paralisados, pois as suas iniciativas mais importantes dependem da aprovação do Congresso. Nesse contexto, o governo busca atrair partidos e grupos políticos para a sua base de sustentação parlamentar, visando a garantir a governabilidade. Tal dinâmica, em si mesma, não é necessariamente patológica. A patologia surge quando os partidos e lideranças políticas passam a aderir ao governo não pela perspectiva de participar da administração e de influenciar na for- mulação da sua agenda, mas no afã de conseguir ganhos econômicos, visando a viabilizar o financiamento de campanhas eleitorais, ou mesmo obter o puro enriquecimento pessoal dos agentes envolvidos. Nesse segundo cenário " infelizmente tão comum no Brasil ", partidos e grupos políticos trocam o apoio ao governo por posições estratégicas na administração pública, que abrem espaço para criação de relações promíscuas com empresas e para a prática da corrupção. A expressão "presidencialismo de coalizão" fui cunhada por Sérgio Abranches, em texto que se tornou um clássico das ciências polí- ticas no Brasil: "Presidencialismo de coalizão. O dilema institucional brasileiro". Dados. Revista de Ciências Sociais, v. 31, n. 1, 1988, p. 5-34. Veja-se também, Fernando Limongi. "A democracia no Brasil. Presidencialismo, coalização partidária e processo decisório". Novos Estudos CEBRAP, n. 76, 2006. 8 "Patrimonialismo" é categoria empregada por Max Weber para descrever uma das formas de dominação política tra- dicional (cf. Max Weber. Economia y Sociedad. México: Fondo de Cultura Econômica, 1998, p. 180-193). No pensamento social brasileiro, o tratamento canônico da matéria encontra-se em Raymundo Faoro. Os Donos do Poder: formação do patronato político brasileiro, 2 v. 9ª ed. Rio de Janeiro: ed. Globo, 1991.
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