Direito em Movimento - Volume 20 - Número 2 - 2º semestre - 2022

96 Direito em Movimento, Rio de Janeiro, v. 20 - n. 2, p. 82-110, 2º sem. 2022 ARTIGOS contratual e extracontratual, entre nexo de imputação objetivo e subjetivo, assim como a separação ortodoxa entre o dano extrapatrimonial e a categoria do ilícito . Qual é a “moral” do dano extrapatrimonial? Em outros termos, por que a dicotomia entre dano material e dano extrapatrimonial é nociva à funcionalidade da responsabilidade civil? O Código Civil de 1916 (elaborado por Clóvis Bevilaqua) trazia con- ceitos que remetiam à “vontade interna”dos sujeitos (vide art. 85 do Código revogado). Pontes de Miranda (1981, p. 87) comenta que se trata de uma “ingenuidade”, essa utilização de fatores solipsistas, individualistas, porque ficam sujeitos à manipulação. O descuido em relação à fenomenologia e aos aspectos éticos e culturais se deve ao fato de Bevilaqua ser um teórico, um professor, sequer ser um advogado atuante em sua época. Ou seja, a “moral” do “dano moral” do século XX ficava na cabeça do agente – que deveria ser interpretado pela discrição do julgador, algo efetivamente impossível e cor- relacionado a decisionismos estamentais 4 . A modificação que ocorre por intermédio de um novo direito privado solidário é que não importa conferir inúmeros predicados ao dano extrapa- trimonial. Se os práticos falam em dano “presumido”, em dano “ in re ipsa ” ou em “aborrecimento significativo”, todos os qualificativos desencobrem uma experiência humana que é meramente instrumental a uma feição “cul- tural” do que se entende por danoso em determinada sociedade e em um certo lapso temporal. Com efeito, é notável que certas atividades humanas passaram a serem consideradas eventos que desencadeiam a indenização por dano extrapatrimonial, porque foram cotejadas a um grau de ilicitude praticada, ou seja, existe uma reprovação social que decorre da compreensão do ordenamento jurídico 5 . 4 A noção psicológica da “culpabilidade” em direito privado foi abandonada em privilégio da análise de um “modelo de conduta ideal”, um standard que abarca as expectativas sociais dos atores em suas diversas relações na sociedade de consumo (SCHREIBER, 2005, p. 51). 5 Na década de 1980, não se cogitava o dano à imagem – não quer dizer que as pessoas não pudessem se sentir lesadas em sua intimidade, em seu psicológico, quando publicada uma notícia perversa a seu respeito. Ocorre que a cultura daquela época, demasiadamente individualista, não se importava com a exposição das pessoas perante a sociedade. Consequentemente, o ordenamento jurídico não tinha a previsão sobre a prote- ção do nome, da imagem, dentre outras facetas da personalidade. Atualmente, a tutela da imagem respalda decisões conforme a seguinte: “Comprovado que a notícia veiculada pela demandada, muito embora não

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