Direito em Movimento - Volume 20 - Número 2 - 2º semestre - 2022
265 ARTIGOS Direito em Movimento, Rio de Janeiro, v. 20 - n. 2, p. 242-266, 2º sem. 2022 configurar um crime omisso próprio, cujo dever de agir, por espírito de so- lidariedade, emana da norma. Assim, se Mévio Limoeiro, lenhador que é protagonista da vida real da historinha em quadrinhos de João e Maria – que foram levados para a floresta pela segunda vez pela madrastra má, desta vez, sem o miolo de pão para demarcarem o trajeto, sendo por lá abandonados –, presenciar ou tiver conhecimento e nada comunicar à autoridade pública, após o advento do novo diploma legal, por faltar com o seu dever legal de agir, guardando para si a ciência do crime de abandono de incapaz, incidirá nas penas do art. 26 da Lei nº 14.344/22. Se as crianças se ferirem gravemente na floresta (lesão corporal de natureza grave), Mévio ainda terá a sua pena aumentada de metade e triplicada caso venham a perder a vida, bem como terá a sua pena fixada em dobro por ser pai (ascendente) das vítimas. É a vida imitando a arte! Conclusão Durante décadas, o autoritarismo imperou como forma de educa- ção e correção às crianças e aos adolescentes. A violência psicológica, por não ser detectada em exame de corpo de delito, restava invisível aos olhos da sociedade. A violência física, enxergada como castigo justo, era des- prezada aos olhos da família, da sociedade e do Estado. Muitas crianças – hoje, pessoas adultas – acumulam traumas de maus tratos velados, outras tantas perderam a vida para que hoje os seus gritos fossem escutados. E foi do encontro da comoção social com o sentir legislativo que brotou a Lei nº 14.344/22. Que o Direito Penal não pode ser encarado como “um bom pai de família” nós sabemos, mas, quando não se tem nenhuma luz, tudo que reluz vira ouro. Logo, ainda que essa seja apenas uma resposta do legislador à sociedade, alinhado ao Direito Penal Simbólico, que seja, ao menos, o pontapé inicial para a efetividade daquilo que denominamos de prevenção geral negativa. E, não importa se imbuído de medo da reprimenda ou de valores éticos, se o homem pensar duas vezes antes agir, já terá razão de ser a própria pena.
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