Direito em Movimento - Volume 19 - Número 2 - 2º semestre - 2021
44 Direito em Movimento, Rio de Janeiro, v. 19 - n. 2, p. 42-70, 2º sem. 2021 ARTIGOS tentar compreender o atual papel do habeas corpus no nosso sistema cons- titucional, bem como as incongruências daí resultantes, a fim de, então, se apresentar uma solução. I.2 Metodologia Para alcançar resultados cientificamente válidos, a escolha do método é talvez o mais importante para o estudioso do Direito. Muitas análises doutrinárias produzidas no Brasil deixam-se seduzir pela tentação de arquitetar um esquema constitucional “ideal”, isto é, es- quecer o texto da Constituição e imaginar qual modelo de ordenamento jurídico melhor atenderia aos interesses da nação. O problema ganha contornos ainda mais graves quando se considera que boa parte das hipóteses sugeridas tem por base um modelo constitucio- nal específico de determinado país (Áustria, Alemanha e EUA, apenas para enumerar os mais citados), do qual é difícil extrair pontos em comum com o ordenamento brasileiro (KELSEN, Hans 2011, p.306 e ss) 1 . Além disso, 1 Não faz sentido, por exemplo, falar-se em STF atuando como “legislador negativo” – modelo kelseniano, de jurisdição concentrada, baseado na constituição austríaca – quando vigora no Brasil o princípio da nulidade. No modelo austríaco, fundamento do pensamento de Kelsen, vigora o princípio da anulabilidade. Nele, a norma inconstitucional é válida até ser declarada como tal pela Corte Constitucional. Uma vez realizada a declaração de inconstitucionalidade, a norma inquinada é retirada do ordenamento jurídico, à semelhança do que ocorre no fenômeno da revogação de normas. Daí a metáfora com o “legislador negativo”, ou seja, uma nova norma para revogar a norma existente. Já no Brasil, onde vigora o princípio da nulidade – segun- do admitido pela imensa maioria da doutrina –, a norma inconstitucional é nula ab initio . A declaração de inconstitucionalidade não “retira” a norma inquinada do ordenamento, à semelhança da revogação, mas, em verdade, reconhece que ela jamais ingressou no ordenamento. Analisando o ordenamento português – nesse aspecto, idêntico ao brasileiro –, o Prof. Marcelo Rebelo de Sousa bem anota que “o tribunal não constitui a invalidade, como acontece na anulação (mesmo nos casos de anulação com efeitos retroactivos). Ele limita-se a verificar e a declarar, expressa ou implicitamente, a nulidade do acto inconstitucional, que já existia desde a sua prática” (SOUSA, Marcelo Rebelo. O valor jurídico do acto inconstitucional. Lisboa: BFDUL, 1988, p. 255). Nesse ponto específico, discorda-se da linha adotada por Elival da Silva Ramos, para quem a declaração de inconstitucionalidade da norma decorre de uma “ineficácia congênita”. É justamente por não ter ingressado a norma no ordenamento que esta não é apta a produzir seus efeitos. De fato, “não é o provimento jurisdicional que, reconhecendo a inconstitucionalidade do ato controlado, desconstitui os seus efeitos, retroativamente, desde a sua edição” (RAMOS, Elival da Silva. Controle de constitucionalidade no Brasil, xx. p. 88). Mas o vício a inquinar a norma manifesta-se no plano da validade, não no plano da eficácia. Sobre isso, já dizia Marcelo Rebelo de Sousa que “do valor do acto inconstitucional se deve distinguir a sua ineficácia, tal como do valor do acto inconstitucional cumpre diferenciar a respectiva eficácia” (SOUSA, Marcelo Rebelo. Op. Cit., p. 148). Com efeito, “a inexistência é sempre um desvalor jurídico ou seja uma forma de o Direito se recusar a aceitar como minimamente identificável uma omissão que não é relevante ou uma certa realidade material que se aparenta com um acto do poder político do Estado” (SOUSA, Marcelo Rebelo. Op. Cit., p. 157). Aliás, o próprio Elival da
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