Direito em Movimento - Volume 19 - Número 1 - 1º semestre - 2021

255 ARTIGOS Direito em Movimento, Rio de Janeiro, v. 19 - n. 1, p. 240-268, 1º sem. 2021 fraude, cujo sujeito passivo era somente a “mulher honesta”, a redundar em que a mulher “desonesta” não seria merecedora da proteção estatal. A expressão “mulher honesta” utilizada pela lei penal traz ínsita um juízo de valor de natureza patriarcal e tem como consequência a apuração, perante os órgãos estatais de persecução penal, da “honestidade” da mulher que se vê vítima de delitos sexuais.Vale dizer, quando a mulher pretende que o crime sexual que sofreu seja devidamente apurado nas instâncias crimi- nais, a sua própria honestidade-moralidade é investigada, invertendo-se as posições de vítima e de algoz naquela investigação. É a denominada “lógica da honestidade”, expressão adotada por Andrade (2005, p. 90-91), que estabelece uma grande linha divisória entre as mulheres consideradas honestas (do ponto de vista da moral sexual dominante), que podem ser consideradas vítimas pelo sistema, e as mulheres desonestas (das quais a prostituta é o modelo radicalizado), que o sistema abandona na medida em que não se adequam aos padrões de moralidade sexual impostos pelo patriarcado à mulher. (ANDRADE, 2005, p. 90-91). Destarte, quando a discriminação contra a mulher não é realizada pela própria norma, a interpretação doutrinária ou jurisprudencial o faz. Exemplo da interferência dos preconceitos de gênero se vê de enten- dimento doutrinário apresentado em importante obra de Direito Penal do ano de 1975: A vítima deve ser mulher honesta, e como tal se entende, não somente aquela cuja conduta, sob o ponto de vista da vida moral, é irrepreensí- vel, senão também aquela que ainda não rompeu com o minimum de decência exigido pelos bons costumes. Só deixa de ser honesta (sob o prisma jurídico-penal) a mulher francamente desregrada, aquela que, inescrupulosamente, multorum libidini patet , ainda que não tenha des- cido à condição autêntica de prostitua. Desonesta é a mulher fácil, que se entrega a uns e outros, por interesse ou mera depravação ( cum vel sine pcunia accepta ). Não perde a qualidade de honesta nem mesmo a amá- sia, a concubina, a adúltera, a atriz de cabaré, desde que não se despeça dos banais preconceitos ou elementares reservas de pudor. A proteção

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