Direito em Movimento - Volume 16 - Número 2 - 2º semestre/2018
236 Direito em Movimento, Rio de Janeiro, v. 16 - n. 2, p. 221-244, 2º sem. 2018 DECISÕES COMENTADAS Ocorre que alguns daqueles problemas eventualmente giram em tor- no da prática de crimes: o cidadão poderá confessar um delito ao sacerdote 5 , ao advogado que o defenderá e mesmo a um médico – como na hipótese vertente abrangida pelo aresto que aqui estamos a perscrutar, cuja situação fática adveio da necessidade que teve uma paciente de buscar auxílio médi- co por conta de um autoaborto que lhe gerou dores incontroláveis. Não se trata aqui, como claramente percebemos, de confissão espontâ- nea, desinteressada, da prática de algum ilícito penal a conhecido ou amigo – estes bem poderão ser chamados a depor e obrigados a dizer a verdade nestas situações, sob o risco de responderem pela prática do crime previsto no artigo 342 do Código Penal, na hipótese de fazerem afirmação falsa, ou negarem ou calarem a verdade como testemunhas compromissadas, isto porque receberam a confissão fora do contexto de indispensabilidade do relatado, visando ao exercício de direito fundamental (v.g., ao exercício da própria fé, à busca do direito à saúde ou do acesso à Justiça). Como visto, em dadas situações da vida, a busca de um profissional é compulsória, indispensável, e se a eles não for dita a estrita verdade pelo interessado, correrá sérios riscos de natureza religiosa, jurídica ou médica. Sabemos (como diria Al Gore...) que algumas verdades são profundamente inconvenientes. “Sou humano, nada do que é humano me é estranho” (afirmou o sábio Terêncio); mas quem trabalha há décadas em Varas Criminais tem pleno conhecimento de que há estranhezas menores e outras bem maiores... Nem sempre é conveniente, para acusados em processos criminais e por decorrência de estratégias defensivas concebidas por seus patronos, di- zer a mais pura verdade – por vezes é até mesmo conveniente mentir, o que admite o processo penal pátrio sem qualquer prejuízo ao réu, como corolá- rio do princípio constitucional da ampla defesa. 5 Dispõe o Código de Direito Canônico da Igreja Católica, promulgado em 1983, em seu Cânone 983: § 1. O sigilo sacramental é inviolável; pelo que o confessor não pode denunciar o penitente nem por palavras nem por qualquer outro modo nem por causa alguma. § 2. Estão também obrigados a guardar segredo o intérprete, se o houver, e todos os outros a quem tiver chegado, por qualquer modo, o conhecimento dos pecados mani- festados em confissão.
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