ARTE E PALAVRA
30 C hristina N icoll S imões C avallari Psicóloga formada pelo Instituto de Psicologia da Universida- de Federal do Rio de Janeiro (IP-UFRJ). Psicanalista membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro (SBPRJ). Analista de crianças e adolescentes. Integra o grupo de docentes do Instituto da SBPRJ. Análise apresentada na Roda de Conversa da segunda tem- porada do programa Livro Aber- to – Encontros com a Literatura , sobre a obra da escritora Lygia Fagundes Telles, promovido pela Comissão Biblioteca e Cul- tura da EMERJ em 16/9/2021. https://www.youtube.com/wat- ch?v=JEoJCBI-ltg dessas marcas quando relata o sonho de Rodolfo. Ele baila com a mãe sem tocar os pés no chão, o que me fez pensar no bebê no colo da mãe em- balado e ouvindo acalantos. De repente, o suor começa a escorrer, o momento se estra- ga, a mãe é sentida distante, uma morta-viva. A seguir, ele vai servir o café e fica com a xicrinha rachada para si e dá a perfeita para o irmão, como se nos mostrasse que para ele, a mãe ficou danificada, e para o irmão, ficou íntegra. Só sabemos, na condição de leitores, que a mãe ficou muito doente e morreu preco- cemente. Como cada um dos filhos lidou com o luto é bem diferente. Eduardo parece, de fato, ter conservado a mãe boa. Rodolfo parece ter ficado com a mãe morta que não cuida dos filhos. Nossas lembranças também são modificadas por nossos sentimentos. E Rodolfo não dava conta dentro dele dos próprios sentimentos. “ Limpei as mãos viscosas no peitoril da ja- nela e abri os olhos que ardiam, o sal do suor é mais violento que o sal das lágrimas ”, diz. Quanta dor! Rodolfo chorava por to- dos os poros, lágrimas que não tinham espaço para sair pelos olhos, chorar, sentir. Parece que Rodolfo tentava escapar como um lagarto, se esconder do outro, do contato, da rela- ção, dos sentimentos. O amor do irmão o incomo- dava. Podemos imaginar que a chegada de um irmãozinho desperte sentimentos hostis, afinal, como diz a cantiga de ninar, “ a casa já tem novo dono, novo rei no trono ”. O problema é que parece que Rodolfo fi- cou parado aí, no momento em que se sentiu destronado pelo irmão. Ele precisaria de alguém que pudesse recebê-lo com sua dor, sentir com ele, suportá-lo, aguentar seu ódio e suas mágoas, conseguir dar significado às suas vivências, inclusive resgatar o que tinha de bom. Ele parecia não ver o lado bom da vida, não se sentia amado por ninguém. O açúcar é sentido por ele como um áci- do corrosivo – uma metáfora do modo como vivia, transfor- mando tudo em dor. Durante a visita, Eduardo, o irmão, convida-o para ser o padrinho de seu filho, e o sen- timento de Rodolfo é de humi- lhação, já que não pudera ser pai e seria padrinho. Fica preso e refém do próprio ódio, que dá o tom de toda experiência emocional, sem chance de sair desse enredo rancoroso. O conto de Lygia mexe com nossos sentimentos mais profundos e primitivos. Há muito o que pensar e refletir; seria impossível colocar tudo aqui. Agradeço a oportunida- de de conversar neste espaço de troca de ideias e saberes. A literatura é uma paixão na mi- nha vida. Obrigada pelo con- vite. Parabenizo a iniciativa da EMERJ (Escola da Magistratu- ra do Estado do Rio de Janeiro) pela organização da atividade Livro Aberto . Ainda agradeço a Lygia por nos brindar com sua obra e esse conto primoroso.
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