ARTE E PALAVRA

27 Verde lagarto amarelo 1 , um olhar psicanalítico 1 TELLES, Lygia Faguntes, Os Contos - 1ª edição. - São Paulo: Companhia das Letras, 2018 C hristina N icoll S imões C avallari o personagem, referindo-se ao irmão Eduardo, que, já adulto, vai visitá-lo e reaviva lembranças da infância dos dois na casa materna. A partir dessa visita, a autora consegue nos levar ao âmago da relação desses dois irmãos, sempre pelo ponto de vista de Rodolfo. Con- frontando passado e presente, fantasia e reali- dade, Lygia nos atrai para a cena do encontro dos dois, e somos tocados por memórias vivas cheias de emoções, cheiros, gostos e cores. Os personagens se reencontram no passado e na vida presente, que vem pintada de vivências an- tigas. A começar por um pacote de uvas roxas. As uvas, deliciosas para um, são enjoativas para outro... Como dois irmãos podem sentir a vida de modo tão diferente? Seguindo o exemplo de Freud, que se apro- priava de alguns mitos para entender o psiquis- mo humano, lembro-me da história bíblica de Caim e Abel, um complexo de sentimentos da relação de dois irmãos, que tem o desfecho trá- gico em que Caim mata Abel por ciúmes do pai. Lygia, magistralmente, descreve a fantasia do as- sassinato de Eduardo. Como numa obra de arte, a escritora nos leva para dentro da mente do menino atordoado por amor e ódio de maneira muito viva. A criança chega a acreditar que o irmão esteja ferido. “E de repente me precipitei pela rua afora, eu o queria vivo, o canivete, não!”, diz o personagem. E nós, leitores, temos a dimensão da intensidade dos sentimentos do menino, que vai, desesperado e confuso, em busca do irmão. Chega a procurar o canivete que só existe na sua imaginação. F oi uma honra para mim ser convidada a participar do encontro literário Livro Aber- to e contribuir com o olhar psicanalítico sobre o conto Verde lagarto amarelo , de Lygia Fagundes Telles, publicado em 1970. O dia do encontro virtual, em 16 de setembro, coincidiu com o Yom Kippur , data sagrada para o judaís- mo, o que me remeteu imediatamente ao fato de que Freud era judeu e de que o conto em debate propõe reflexões análogas ao que é re- comendado pelo calendário judaico nesse dia. O Yom Kippur é o Dia do Perdão , quando ju- deus jejuam, pedem perdão e perdoam. É um dia de reconciliação consigo mesmo e com o outro. O conto nos ajuda a pensar sobre esses mesmos sentimentos. Lygia Fagundes Telles dá vida a um menino que não perdoa, que parece ser movido a rancor e mágoa. Ela descreve epi- sódios da vida de Rodolfo, personagem princi- pal, e, de modo vivo, nos faz acompanhar o es- trago que esses sentimentos contidos causaram em sua vida e em suas relações. A psicanálise sempre andou de mãos dadas com a literatura e com a arte. Os artistas e escri- tores têm a capacidade de nos tocar a alma, nos fazer sentir, pensar, refletir. Bem ao contrário do desejo do nosso pobre Rodolfo: “não quero lem- brar nada, não quero saber de nada!” . Nós, psica- nalistas, estamos sempre dispostos a conhecer, a iluminar aquilo que ficou obscuro, desconhe- cido, mas presente e atuante, como vimos na triste vida do menino. “ E me trazia a infância, será que ele não vê que para mim foi só sofrimento?” , diz

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