ARTE E PALAVRA
25 A na P aula P into L ourenço Docente da Universidade Autónoma de Lisboa e da Universidade Lusófona de humanidades e Tecnologias; Mestre em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra; Doutoranda na Universidade Autónoma de Lisboa; Vogal da Comissão Nacional de Protecção de Dados. Certo dia, preparava um cozido de peru com papas de batata doce polvilhada de ca- nela e gengibre moídos quando recomeçou aquela perturbação sonora de mal dormir a interferir na minha concentração… o cheiro fresco e doce da canela deslizando acetinada- mente pelo fio da faca muito afiada, a confun- dir-se com o cheiro de suor daquela arma de aborrecer os outros; a aurora quase a anun- ciar-se e ela ali, a abrir e fechar a boca como peixe debatendo-se no areal da Costa Verde, ansiando por soltar-se das redes de arrastão. – Cala-te!, insisti três vezes. E das três vezes, o eco trouxe-me vozes de outras celas impondo- me silêncio. Quando a meio da decoração de um bolo de baptizado a camponesa atarracada e engor- dada a pão de milho e azeitonas estremeceu, outra vez, no seu eco das profundezas, vi-me de repente perto dela, lancei-lhe as mãos ao pescoço e fiz tanta força como só me lembra- va de fazer para amassar a bola de carnes de Trás-os-Montes antes de a pôr a levedar. No início, ainda se ouvia um silvo a debater-se para se libertar. Depois, esse ténue sinal foi enfraquecendo aos poucos. Até que, por fim, pude, em sosse- go, colocar sobre o glacé mais alvo que a ima- ginação consente, um cândido recém-nascido descansando naquela cama feita de bolo tão suave como um colo de mãe. E então deitei- me, numa exaustão feliz, esperando o dia.
Made with FlippingBook
RkJQdWJsaXNoZXIy NTgyODMz