ARTE E PALAVRA
24 (...) a aurora quase a anunciar- se e ela ali, a abrir e fechar a boca como peixe debatendo-se no areal da CostaVerde, ansiando por soltar-se das redes de arrastão. “ var a sua insignificância. E enquanto o denigro, dou-me conta de que não sinto pena. Nem re- morso. Que poderei dormir sossegada, planean- do novas delícias para quando for libertada (se ao menos alguém me trouxesse papel e lápis!). A tranquilidade fria da prisão servia-me como retiro, apenas tendo a desfavor a incer- teza do fim, mas a enorme vantagem dos dias livres, a acrescer ao silêncio da noite, longa, à minha disposição. Pois não é que tinham de estragar-me este bem-estar! Num certo dia, substituíram a jo- vem tímida que partilhava a cela comigo por uma mulher sem maneiras nem pudor, que levantava a saia para ajeitar a blusa com pu- xões secos e desconcertantes, deixando visí- vel a coxa grossa e cujo pesado corpo não se aquietava, provocando com o embate das suas carnes contra o catre um restolhar outonal de folhas. O seu ressonar monocórdico, constante e aflautado, impedia a sublimação dos meus pensamentos: – Controla-te, controla-te, que nada te dis- traia –, dava eu conselhos a mim mesma, mas sem efeito! A repetição tornava aquele som cada vez mais presente, cada vez mais o mesmo, inter- ferindo com tenras lascas do borrego assado com molho de frutos silvestres acompanhados de batatinhas novas, impedindo-as de alou- rar no forno da minha imaginação. Tentei controlar-me, mas a persistência começava a enervar-me mais do que auxiliares de cozinha apanhados a usar, nos cozinhados, o azeite fino de aspergir saladas. Sossegou durante uns minutos e redobrei no entusiasmo da criação!
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