ARTE E PALAVRA

23 de novos manjares, insaciante vontade de criar. À falta de utensílios, pensava como seria. Ima- ginava noite dentro. Nos primeiros dias, talvez fosse porque não queria pensar; nos seguintes, quem sabe se para matar a ociosidade; depois, por necessidade de artista, incapaz de contrariar a torrente de ideias geniais, aptas a satisfazer as mais exigentes papi- las gustativas. De dia cumpria os rituais que me impu- nham, mantinha-me à distância dos marginais que se encontravam naquele lugar onde não era suposto encontrar-me e, de noite, iniciava o trabalho. A ocasião exigia minúcia e sigilo, não fosse a minha colega de cela roubar-me as re- ceitas com que pretendia surpreender os muitos clientes que haviam de estar à espera da minha libertação para voltar a comer bem. Não have- ria de demorar! Afinal, como poderiam manter- me presa até ao fim, sabendo que a culpa não fora minha, mas do triturador sem gosto que se me atravessou na vida, que me pedia ostras cozi- das e acreditava que as trufas nasciam em árvo- res! - Ingrato! Sensaborão! Rural! Ignorante sem gosto...! E cada vez que relembrava, regressava a ira. Por minha vontade, ficaria horas a adjecti- Que azar o meu que um destes comensais fosse exatamente calhar-me no julgamento! Se ao menos tivessem provado o pato, ou o peixe-galo, talvez hoje eu não estivesse presa. “ de outro poiso, disseram-me. Se apreciassem a minha cuisine , fariam do meu sítio o seu local de tertúlias. Eu não me importava que aquele fosse o seu novo local de tertúlias, desde que apre- ciassem o resultado de longas noites de experi- ências numa cozinha tão asséptica e milimetri- camente ordenada como um laboratório, como a minha. Com a carta na frente, ficaram largos minutos trocando opiniões e fazendo ares, ora de espanto, ora de questionamento, ora de sur- presa. Dirigi-me ao grupo julgando-os indecisos sobre a escolha - evidentemente difícil - entre o pato au foie-gras com molho de whisky e o peixe- galo tostado com grão de pimenta rosa acompa- nhado com arroz de algas verdes. Mas não, que ingénua fui! Para minha surpresa, a indecisão prendia-se com a escolha do tema da discussão para o almoço! Tamanha indiferença enervou- me de tal forma que lhes arranquei furiosamente a carta e acrescentei à mão, no cimo da lista dos pratos do dia, com tinta vermelha tamanho 25, para ficarem esclarecidos: «Tertúlia: 50 euros». Perceberam. Levantaram-se. Foram-se em- bora proferindo frases em latim que seriam se- guramente impropérios. Que azar o meu que um destes comensais fosse exatamente calhar-me no julgamento! Se ao menos tivessem provado o pato, ou o peixe- galo, talvez hoje eu não estivesse presa. Amo a noite! Forrada de silêncio, vestida do enevoado pardacento das horas como um amante cujo abraço em vez de acalmar provo- ca um turbilhão incapaz de controlar. Por isso ocupei muitas horas entre as quatro paredes da cozinha, noite dentro, naquele silêncio bom para criar. Ah! Quantas vezes ficava acordada a criar, quase em êxtase. Foi o que aconteceu no tempo em que estive preventivamente pre- sa: na minha cabeça rodopiavam ideias, visões

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