ARTE E PALAVRA

22 Flambé de truta com geleia de rosas brancas e duas mortes Ana Paula Pinto Lourenço M atei ontem pela segunda vez e não me arrependo! Não é que eu não tenha muito respeito pela vida, que tenho, mas há pessoas que não merecem vi- ver, porque incomodam quem pode melhorar o mundo, como eu. Não me lembro exactamente como aconte- ceu da primeira vez. Toquei-lhe à campainha e quando me abriu a porta e viu o brilho dos meus olhos e, na minha mão, brilhando mais que eles, uma faca de trinchar carne, prostrou-se de joelhos suplicante e prometeu-me “mundos e fundos”, idas aqui e ali, casas e carros, enfim, coisas que me são indiferentes, o que acicatou ainda mais a minha vontade de o matar. Não sei bem por que o fiz, mas tenho p’ra mim que foi algo que foi começando, se foi avolumando, enchendo, preenchendo e esticando até ao mo- mento em que na noite anterior provou a cas- tanha caramelizada com caril. Aquele trejeito subtil da sua boca; o olhar fugidio e decepciona- do como o de uma criança a quem oferecessem bróculos em vez de doces. Sim, creio que foi o que precipitou o fim. O meu advogado levantou as sobrancelhas, depois franziu o sobrolho, abriu a boca, incré- dulo, quando lhe contei das minhas razões. O Procurador não precisou de grande investiga- ção para me acusar pelo homicídio: no julga- mento, pediu uma condenação vigorosa para quem - segundo as suas palavras - “por um mo- tivo fútil, patenteou uma tão absoluta ausên- cia de sentimentos mínimos de piedade e um desprezo tão acentuado pelo valor da vida hu- mana”. De seguida, sentou-se, cerrou os lábios enquanto acenava com veemência a cabeça, abrindo-os levemente para afirmar-se convicto de que seria feita justiça! Houve um momento em que me pareceu ter merecido a solidariedade e simpatia de um velho juiz-asa que me olhava, com aparente ter- nura; mas mal esta sensação começava a confor- tar-me, já o juiz meneava a cabeça e atirava para o ar com desprezo: «Por causa de cozinhados, tch »! Apeteceu-me gritar-lhe que não foram os cozinhados, mas a incapacidade de um boçal em apreciá-los; que o meu erro nada tinha a ver com tempos de cozedura, com densidade de xaropes ou consistência de molhos, mas com o facto de, após tantos anos de solidão, o meu co- ração ter perdido a sagacidade e se ter deixado enlevar por um Adónis impreparado para igua- rias harmoniosas e requintadas delícias terrenas que haviam de ficar na história da restauração de Lisboa ao lado dos restaurantes com nomes que apenas homens endinheirados pronunciam com naturalidade. Mas não me pareceu neces- sário enfatizar uma evidência. Oh!, que percebem aqueles juízes de boa comida, se nunca provaram a minha! Eles, que frequentam sempre o mesmo restaurante com a rigidez monástica de uma andorinha… Certa vez, um grupo de juízes entrou-me pelo restaurante dentro. Andavam à procura

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