ARTE E PALAVRA
19 do com a gente de juízo (...)” “ Bacamarte a provava esses sentimentos de estima e compaixão, mas acrescentava que a ciência era a ciência, e que ele não podia deixar na rua um mentecapto”. (...) “Meus senhores, a ciência é coisa séria, e merece ser tratada com seriedade. Não dou razão dos meus atos de alienista a ninguém, salvo aos mestres e a Deus”. O escritor encarna em Simão Bacamarte a ci- ência e, em especial, a ciência médica psiquiátrica, e esta não ficou de fora da sua crítica, uma vez que no conto a menção às monomanias aparece em vários momentos. As monomanias, em uma expli- cação muito simples, posto que não há espaço nes- te trabalho para aprofundamentos, caracterizam-se segundo um único pensamento ou ideia que do- mina a mente. Na seara jurídica, é muito conheci- da a cleptomania. Ela se articulou no século XIX e aumentou o poder dos psiquiatras, pois só eles podiam constatá-la, transformando-se na vedete do pensamento psiquiátrico. Os monomaníacos deve- delírios, alucinações diversas” . No corpo do texto, entre as monomanias classificadas pelo alienista, apare- cem a religiosa e a santuária. Simão Bacamarte, como já apontado, tem po- sição de destaque no texto, seja como alienista ou como representante da ciência e do poder, inves- tido que estava pela Coroa portuguesa, então em franca decadência. Porém, também ganham des- taque a Câmara dos Vereadores; a igreja católica, com o poder eclesiástico exercido através do vigá- rio e do padre Lopes; o boticário Crispim Soares; e o barbeiro Porfírio, este por um momento o re- presentante do povo. Extrai-se daí o que hoje são o Poder Executivo, o Poder Legislativo e o povo, numa trama genialmente organizada por Macha- do de Assis aos quais submete as suas críticas. O barbeiro Porfírio demonstra a ambição pelo poder e, diante da inércia das autoridades, liderou um movimento popular batizado de Re- volta da Canjica , que exigiu o fechamento da Casa Verde . Quando se deu conta da quantidade de se- guidores que conseguiu reunir, decidiu ignorar o hospício de Simão Bacamarte, preferindo destituir a Câmara dos Vereadores e se autoproclamar, ain- da que brevemente, “o Protetor da vila em nome de Sua Majestade e do povo”. Porfírio, entretanto, como representante do povo e sendo um deles, pouco tempo ficou no poder, como é comum acontecer, pois “João Pina, outro barbeiro, dizia abertamente nas ruas que o Porfírio es- tava ‘vendido ao ouro de Simão Bacamarte’, frase que con- gregou em torno de João Pina a gente mais resoluta da vila.” (...). “Duas horas depois, caía Porfírio ignominiosamente e João Pina assumia a difícil tarefa do governo”. Entretan- to, a gestão popular mais uma vez pouco durou, porque “entrou na vila uma força mandada pelo vice-rei, e restabeleceu a ordem”. Porfírio, a quem atribuímos a representação popular, diante da força do aparato estatal, não manifestou mais qualquer desejo de voltar ao po- der, uma vez que também experimentou o aprisio- Simão Bacamarte não é um lunático, não é uma caricatura, ele é real e atemporal.Temos em torno de 700.000 presos no denominado país da impunidade e, considerando o número absoluto, temos a 3ª maior população carcerária do mundo. “ ” riam ser contidos por serem incuráveis e perigosos. A internação era vista também como uma prática terapêutica humanitária, como se retira do texto: “ Como se fosse grande arabista, achou no Corão que Maomé declara veneráveis os doidos, pela consideração de que Alá lhes tira o juízo para que não pequem” . Simão Bacamarte dividiu os enfermos em duas classes principais: “os furiosos e os mansos; daí passou às subclasses, monomanias,
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