ARTE E PALAVRA

18 Alienista é uma expressão utilizada para carac- terizar o médico que trata das doenças mentais, e na obra é o personagem com maior destaque, encarnado por Simão Bacamarte, que, segundo o texto, em tempos remotos, viveu em Itaguaí e era “filho da nobreza da terra e o maior dos médicos do Brasil, de Portugal e das Espanhas. Estudara em Coimbra e Pádua. Aos trinta e quatro anos regressou ao Brasil, não podendo el-rei alcançar dele que ficasse em Coimbra, regendo a univer- sidade, ou em Lisboa, expedindo os negócios da monarquia. – A ciência, disse ele a Sua Majestade, é o meu emprego único; Itaguaí é o meu universo” . O alienista foi publicado em 1882, em um Bra- sil que estava prestes a adotar a forma republicana de governo e que tinha fincado raízes no positivis- mo europeu, sobretudo na obra do francês Augus- te Comte. Dentre as várias características, era uma teoria política, moral e filosófica que se baseava na organização social e na disciplina, para a qual o rigor e a ordem eram necessários para o cresci- mento moral e social da nação. Todavia, para a perfunctória análise a que nos propusemos, basta que se mencione a crença absoluta no progresso e na ciência, a qual inspirou o golpe militar que gerou a república e inseriu na bandeira nacional a expressão ordem e progresso. A crítica ao positivismo aparece logo no início do texto, quando Simão Bacamarte descreve a sua esposa, D. Evarista da Costa e Mascarenhas, como “não bonita nem simpática, mas que reunia con- dições fisiológicas e anatômicas de primeira ordem, digeria com facilidade, dormia regularmente, tinha bom pulso, e excelente vista; estava assim apta para dar-lhe filhos ro- bustos, sãos e inteligentes. Se além dessas prendas – únicas dignas de preocupação de um sábio...”. É uma descrição científica da esposa que a minha experiência profissional me acostumou a ler nos exames criminológicos realizados com os presos, nos quais constava que eram normobúli- cos, o que aliás está no texto quando afirma que a ilustre dama, nutrida exclusivamente com a bela carne de porco de Itaguaí...; além de haver outras verificações, como: deambula com regularidade, é introspectivo, cooperativo com o exame e tantas outras qualificações e conclusões de natureza téc- nico-científica. Entretanto, quando contrariado com o com- portamento da mulher, movido por outros inte- resses, que parecem de ordem sentimental e que o levaram a interná-la na Casa Verde, pois tinha poder para tanto e o exerceu com a mesma força sobre 4/5 da população local, a descrição é bem outra: “já há algum tempo que eu desconfiava, disse gra- vemente o marido. A modéstia com que ela vivera em ambos os matrimônios não podia conciliar-se com o furor das sedas, veludos, rendas e pedras preciosas que manifestou logo que voltou do Rio de Janeiro. Desde então comecei a observá-la. Suas conversas eram todas sobre esses objetos; se eu lhe falava das antigas cortes, inquiria logo da forma dos vestidos das damas; se uma senhora a visitava na minha ausência, antes de me dizer o objeto da visita, descrevia-me o trajo, aprovando umas coisas e censurando outras”. A Casa Verde era o hospício para onde Simão Bacamarte enviou quase todo o povo de Itaguaí e que no texto aparece no diálogo que este trava com o boticário Crispim Soares, que o escritor classifica como um dos seus amigos e comensais: “O principal nesta minha obra da Casa Verde é estudar profundamente a loucura, os seus diversos graus, classificar-lhe os casos, desco- brir enfim a causa do fenômeno e o remédio universal”. Simão Bacamarte era o verdadeiro represen- tante da ciência, cuja crença absoluta no momento histórico da publicação do texto orientava os de- tentores do poder e lhes permitia privar a liberda- de de quem quer que fosse, bastando para isso uma justificação científica, ainda que pseudocien- tífica, para tanto. A propósito, extraio do texto as seguintes passagens: “Homem de ciência, e só de ciência, nada o consternava fora da ciência; e se alguma coisa o pre- ocupava naquela ocasião, se ele deixava correr pela multidão um olhar inquieto e policial, não era outra coisa mais do que a ideia de que algum demente podia achar-se ali mistura-

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