ARTE E PALAVRA
13 B ernard M iodownik Psicanalista e psiquiatra. Membro efetivo com funções específicas do Instituto da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro (SBPRJ). Diretor científico da Federação Brasileira de Psicanálise (FEBRAPSI) 2020-2021. Membro titular da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP). Comentário apresentado na Roda de Conversa da segunda temporada do programa Livro Aberto – En- contros com a Literatura, sobre a obra da escritora Lygia Fagundes Telles, promovido pela Comissão Bibliote- ca e Cultura da EMERJ em 30/9/2021. https://www. youtube.com/watch?v=eub3mMkbhZ8 tro homem visto ou imaginado como mais poten- te. Como se identificar com esse pai que o menino parece enxergar como mais passivo (não sabemos se seria isso mesmo ou apenas uma fantasia do me- nino sobre o pai), agora que tem com a mãe um segredo contra ele? Só lhe resta chorar e envolver o pai “num apertado abraço”, os dois excluídos. Quero levantar outro ponto. Não há por que fazer uma crítica moralista e acusatória à mãe por sua aventura extraconjugal. Não sabemos quais são suas motivações, talvez até uma necessidade de se sentir mais viva. O menino reforça no final do con- to uma situação repetitiva, provavelmente tediosa na casa, “como todas as noites, como todas as noites, igual, igual”. O terrível é ter usado o filho como escudo e como aliado de um segredo. Destaco um aspecto importante para a psicanálise: o olhar da mãe. No conto, a presença do olhar é muito mar- cante. No seu início, no olhar em êxtase do me- nino para a mãe, nos olhos do menino que iam da tela para o casal ao lado e de volta à tela e se cegava ao que acontecia no filme, já que não dava para se cegar às mãos que exploravam os corpos e se entrecruzavam. O olhar ao pai; os olhos cheios de lágrimas, o fechar os olhos para conter as lágrimas ao final do conto, que começou com os olhos bem abertos. Foi um psicanalista inglês, Winnicott, quem chamou a atenção para a importância do olhar amoroso da mãe (ou sua substituta) para a criança como fator de autoconfiança futura na relação com o mundo. Ao olhar para a mãe, a criança se vê como num espelho que será reflexo do amor dela. Não é um amor possessivo, porque este costuma atender mais às necessidades da mãe do que às da criança, mas um amor que ajuda o jovem ser a su- portar as frustrações inerentes à condição humana, inclusive com a própria mãe ou os desencantos que surgem na fase do complexo de Édipo. O principal na definição de Winnicott é que a mãe seja sufi- cientemente boa. No conto, vemos uma mãe totalmente voltada para si mesma. “ Através do espelho, olhou para o meni- no” , mas não olha para as necessidades dele, e sim para o que a envaidece no olhar dele. Quando ele se coloca como homem, ela procura descaracte- rizá-lo “você é o meu nenenzinho, ouviu bem?” , como se precisasse que ele fosse um neném que não en- xergasse o que viria adiante. Uma mãe mais sinto- nizada poderia dizer: um homem igual ao papai, não é? Ao final, também o ironiza “ ah, o nenenzinho cresceu?” e depois desconsidera sua capacidade de compreensão numa desmentida “você não podia ter entendido” (o filme), negando que ele já tinha idade para entender o que acontecera ao seu lado. As- sociei com uma música de Erasmo Carlos que diz “eu era uma criança e entendia tudo, hoje sou adulto e não entendo nada” . Certamente as crianças captam mui- to do que os pais sentem e conseguem perceber o que está à sua volta. Quando lemos uma obra literária, entramos nela como se estivesse acontecendo na realidade, da mesma forma que quando sonhamos é real en- quanto estamos sonhando. Nesse sentido, a his- tória aconteceu de verdade e certamente algum menino passou por tudo isso. Fiquei curioso em saber como o menino de Lygia Fagundes Telles se desenvolveu emocionalmente, como a marca dos acontecimentos se refletiu no seu futuro. A expectativa de que a empatia e o carinho com que ela retratou o seu drama tenha possibilitado a superação de um trauma tão intenso. Caso não tenha conseguido, recomendo a psicanálise. Com certeza, pode ajudá-lo.
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