ARTE E PALAVRA

11 Comentário sobre o conto O menino 1 1 TELLES, Lygia Fagundes, Os Contos - 1ª edição. - São Paulo: Companhia das Letras, 2018 D esde as suas origens, a psicanálise tem mantido uma relação mais que amisto- sa, na verdade, íntima e fecunda com a literatura. Sigmund Freud, o criador da psica- nálise, sempre recorria às fontes literárias para demonstrar como os aspectos inconscientes, cujos traços marcantes têm raízes na infância, se manifestam na personalidade dos indivídu- os, nos quadros mentais patológicos, nas rela- ções entre os indivíduos, entre estes e o meio social, e nas produções corriqueiras e cotidia- nas como, por exemplo, os sonhos e as obras de arte. Ao longo da extensa obra freudiana, encontram-se referências generosas e gratas a autores como Homero, Sófocles, Shakespeare, Goethe, Ibsen, Dostoievski e muitos outros. Afinal, como os psicanalistas entendem o que os escritores fazem? Os escritores empre- gam formas narrativas nas quais as emoções mais primitivas deles próprios encontram expressão na linguagem através de histórias que também tocarão as emoções dos leitores ou, no caso de filmes (o conto se passa em parte dentro de um cinema), através de imagens. Essa interação dos aspectos inconscientes entre produtor e receptor é o que faz com que autores e leitores possam se afastar da realidade muitas vezes difícil e so- nhem conjuntamente as realidades de outros personagens. Os mesmos autores e leitores nem sempre percebem que as emoções expressas pe- los personagens podem ser as suas também, ou as que desejariam ter, ou as que têm medo de ter, já que não é incomum durante uma leitura alguém se perguntar: “Será que sou assim?” O sonho comum funciona desde o início de uma obra escrita, como no conto de Lygia Fagundes B ernard M iodownik Telles: “Sentou-se num tamborete, fincou os cotovelos nos joelhos, apoiou o queixo nas mãos e ficou olhando para a mãe” . Sem que haja consciência do fato, a mente de cada leitor começa a funcionar – a sonhar –, porque tem relação com uma cena comum às crianças, o olhar apaixonado em direção à mãe, o que de imediato fisga o leitor porque evoca uma lembrança ou até porque evoca a tristeza da falta dessa lembrança. Crianças, quando brincam, contam histórias através das brincadeiras; sonhamos histórias du- rante o sono, algumas esquisitas ou até assusta- doras, e, ao longo do dia, não é incomum nos pegarmos devaneando histórias que chamamos tecnicamente de fantasias, que sempre revelam algo sobre o devaneador. Um exemplo simples, a fantasia de ganhar na loteria. Um indivíduo vai imaginar uma história sobre os milhões que es- pera ganhar; já outro imaginará uma história di- versa para si, cada qual levando em conta o pró- prio desejo e os próprios sentimentos. Milhões de histórias são criadas (fantasiadas) por milhões de sujeitos na expectativa do prêmio. O menino do conto também cria histórias, ser o companheiro da mãe, ter a mãe mais bonita e desejada reves- tida com um véu de idealização. O problema é quando a brincadeira deixa de ser uma forma de conviver com a realidade e surge um real e con- creto com potencial de provocar um trauma psí- quico. É o que acontece com o menino do conto de Lygia Fagundes Telles. O conto trata de um conceito fundamental para a psicanálise, o complexo de Édipo. Freud se baseou na história trágica de Édipo Rei confor- me a peça de Sófocles para extrair daí um aspec- to determinante para a estrutura da mente huma-

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