Relatórios de Pesquisa Nupegre | Número 4

21 Relat. Pesq. NUPEGRE, Rio de Janeiro, n. 4, 2019. Viviane V. trabalha com a dimensão colonial desses dispositivos que “inferiorizam e anormalizam corpos e gêneros inconformes com a cisnormatividade”. 30 A colonialidade, como uma relação assimétrica de poder e dominação da metrópole em direção à colônia, é utilizada pela autora para designar esses processos de conformação de identidades e corpos a um paradigma estabelecido pelo entendimento hegemônico do que é ou não tido como normal, socialmente aceito e legitimado pelo discurso médico-científico. Esse paradigma médico-científico para compreensão e confor- mação de identidades e desejos cria os acessos a uma matriz de inteli- gibilidade de gênero 31 , regulando o que é entendido como saudável e o que é classificável como doença a partir de uma expectativa de com- portamento social. Isto é, espera-se uma coerência de comportamento entre vagina-mulher-feminino e pênis-homem-masculino. Os gêneros tornam-se inteligíveis quando se adequam à expectativa de cada um desse “dever-ser”, que segue uma lógica compulsória de sexo/gêne- ro e desejo. Em outras palavras, espera-se que indivíduos marcados pelo sexo biológico feminino compartilhem do simbólico do que é “ser mulher”, e indivíduos marcados pelo sexo biológico masculino com- partilhem do simbólico do que é “ser homem”. Simone de Beauvoir, em 1940, já apontava o dado cultural na sociabilização de mulheres que não “nascemmulheres, tornam-se mulheres” 32 . Esse dado cultural é na- turalizado e atribuído à natureza, como se do sexo biológico decorre-se um “dever-ser” mulher único, estável e lógico. Esta é a inversão per- versa realizada pelos dispositivos que controlam as matrizes de inteli- gibilidade de gênero: essencializam identidades a partir de caracterís- ticas biológicas e legitimam essa operação através de dispositivos de 30 VERGUEIRO, Viviane. Reflexões autoetnográficas trans* sobre saúde: invisibilizações e marginalizações cis- têmicas, e resistências à patologização e normatização das diversidades de gênero. In: Adriana Ribeiro Rice Geisler. (Org.). Protagonismo Trans*: política, direito e saúde na perspectiva da integralidade. 1ed.Niterói: Al- ternativa, v. 1, p. 1-30, 2015. 31 Em Problemas de Gênero, Butler propõe que a inteligibilidade de gênero em sociedades contemporâneas passa pela ordem compulsória sexo/gênero/desejo socialmente imposta. O binarismo é um produto reificado de práticas discursivas múltiplas e difusas que funcionam como regimes de produção/construção de poder, cujos elementos definidores são o falocentrismo e a heterossexualidade compulsória. A naturalização das categorias é inscrita na linguagem por práticas performativas de gênero como forma de legitimação, que produzem e reproduzem significados socialmente estabelecidos. 32 BEAUVOIR, Simone. O segundo sexo. Trad. Sérgio Milliet – 3. Ed. – Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2016.

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