Relatório NUPEDICOM

76 Relat. Pesq. NUPEDICOM, Rio de Janeiro, n. 1, 2022. possui base legal clara para a aplicação da teoria base do negócio, ao contrário da versão original do BGB (1900), cujo único dispositivo outro- ra à disposição do intérprete era o § 242, o qual ordena apenas ao de- vedor executar a prestação de boa-fé, em atenção aos usos do tráfego. Não obstante, a partir desse dispositivo de estreita literalidade 46 , doutrina e jurisprudência alemãs souberam construir a riquíssima teo- ria da confiança, que mudou definitivamente a cara do direito obriga- cional no século XX, inclusive no Brasil. Dessa forma, é incompreensí- vel, para dizer o mínimo, que o direito brasileiro se recuse a modernizar seu regime revisional diante de uma das maiores catástrofes do século. Recorde-se que até a França, sempre avessa à intervenção do juiz nos contratos, deu passo importante – pelo menos no plano legis- lativo – ao positivar, pela primeira vez em duzentos anos, o instituto da revisão contratual no atual art. 1.195 Code , superando o antigo temor de que a intervenção judicial colocasse em risco a estabilidade econô- mica do país 47 . Se o juiz francês irá manusear adequadamente a regra e fazer bom uso da competência atribuída pela Reforma de 2016 é algo que o mundo espera ansiosamente para ver. O legislador, porém, fez o seu papel. A doutrina francesa contemporânea, amparada em estudos comparatistas com o direito alemão, também tem desempenhado sua missão e reclamado a revisão dos contratos diante de profundas altera- ções supervenientes das circunstâncias. Nesse aspecto, o direito brasileiro saiu na frente do direito fran- cês, pois, desde 2002, consagra a boa-fé em três cláusulas gerais, incidentes principalmente no direito das obrigações e dos contratos, exigindo conduta ética dos contratantes e equilíbrio (justiça) contratu- al. Seria um retrocesso histórico abandonar essa importante conquista dogmática em pleno século XXI, quando até o direito francês, último 46 A estreiteza da norma é reconhecida, dentre outros, por: LARENZ, Karl. Richtiges Recht – Grundzüge einer Rechtsethik . München: Beck, 1979, p. 85. 47 Sintomático nesse sentido é o fato de que os juízes não podiam – e não se sentiam – autorizados a revisar os contratos, o que explica o surgimento na práxis contratual do uso de cláusulas que permitiam às partes revisar os contratos diante de alterações imprevisíveis das circunstâncias, como a clause d´adaptation automatique (ex: cláusulas de indexação de preços que readaptavam os contratos independentemente de renegociação) e de cláusulas de renegociação, como as de hardship , que obrigam os contratantes a revisar os termos do contra- to diante de quebra na equivalência das prestações. Sempre houve, porém, o temor de que o uso dessas cláu- sulas colocasse em risco a estabilidade econômica do país. Nesse sentido: CAUVIN, Morgane. Op. cit., p. 169.

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